A batalha da anistia, ou A farsa do bolsonarismo moderado

Era só o que me faltava.

O Brasil enfim levando a julgamento facínoras que tentaram demolir o edifício democrático em nome de uma ideologia miserável como de Jair Bolsonaro e tudo que se fala nos bastidores do Congresso é uma pauta que nenhum brasileiro decente quer ouvir: “anistia”. Capitaneada agora pelo governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, essa nova frente de batalha escancara para quem quiser ver a farsa do “bolsonarismo moderado”.

Pra começo de conversa, qualquer conversa sobre anistia aos golpistas antes de findo o julgamento será algo inútil. Conforme já foi explicado aqui, qualquer discussão sobre perdão a criminosos – e nenhum crime pode ser mais grave numa democracia do que golpe de Estado – só pode acontecer depois do trânsito em julgado da condenação. Isto é: enquanto o julgamento não acabar de vez e ainda for possível interpor recursos, por mais protelatórios que sejam, qualquer decisão nesse sentido será, na melhor das hipóteses, ineficaz (além, é claro, de inconstitucional).

Para além disso, a discussão sobre anistia revela uma falsa pauta do Congresso Nacional. Fora a trupe golpista de Jair Bolsonaro, ninguém quer saber de impunidade. São várias as pesquisas que revelam que a maioria da população se opõe firmemente a qualquer tentativa de passar a mão em quem pretendeu roubar seu voto (porque, no fundo, é a isso que se resume um golpe de Estado). Os percentuais variam de 55% a 65%. Em nenhuma pesquisa séria os que defendem a impunidade dos golpistas alcançam sequer 40% do total.

No final das contas, essa ressurreição assombrada de uma discussão que já deveria estar morta e enterrada é reflexo direto da briga pelo espólio da extrema-direita. Com o barata-voa deflagrado pelas sanções de Donald Trump contra o Brasil, o país pôde assistir de camarote à briga entre Dudu Bananinha e Tarcísio de Freitas pelos votos que ora pertencem a Bolsonaro. Em meio aos diversos impropérios que lançou via Zap contra o próprio pai, Eduardo Bolsonaro deixou uma mensagem muito clara: “Não confie em Tarcísio de Freitas, porque ele nunca fez nada pra te anistiar”.

Mensagem lida, recado captado. Vendo a oportunidade de cavalgar uma candidatura presidencial antes de encerrar sequer um mandato como governador, Tarcísio de Freitas foi a campo em busca dos votos que faltavam para votar a anistia aos golpistas na Câmara dos Deputados. Não só isso. Em diversas entrevistas, Tarcísio fez questão de ressaltar que daria indulto a Bolsonaro “na hora”, porque “não confia na Justiça”.

Com tais atitudes, o atual inquilino do Palácio dos Bandeirantes rasga de vez a fantasia do “bolsonarismo moderado”. Essa tese defendia a noção de que Tarcísio poderia representar uma versão light de Jair Bolsonaro. Um “conservador” que sabe sentar à mesa e usar os talheres, isto é, alguém que defenderia os interesses de “o mercado” e das franjas mais radicais de um cristianismo fanatizado, mas sem colocar o país numa crise institucional por semana.

Embora boa parte da mídia e dos “analistas” tenha embarcado alegremente nesse barco, essa “tese” nunca foi comprada neste espaço (conferir aqui). O “bolsonarismo” não pode ser moderado porque depende, necessariamente, de um estado de tensão constante para manter-se vivo. O que Tarcísio de Freitas está fazendo, para quem consegue enxergar dois palmos à frente do nariz, é anunciar em público que ele topa o arranjo de ser radical, desde que, para isso, receba as bençãos de Jair Bolsonaro como sucessor. Para mostrar que fala sério, já contrata desde agora uma crise constitucional entre Congresso e Supremo sobre a possibilidade de anistiar crimes contra a democracia.

Além de eleitoralmente estúpido (quanto mais próximo alguém estiver de Bolsonaro, mais longe estará do Planalto), o arranjo é precário dentro da própria lógica interna da extrema-direita brasileira. Para a família Bolsonaro, o patrimônio eleitoral de Jair só é transmissível via sucessão hereditária. Em outras palavras, se alguém tiver que herdar os votos do ex-capitão do Exército, esse alguém terá que ser, necessariamente, alguém da família. Terceiros não são admitidos nesse clube.

Não se deve esquecer que ser “líder da oposição” também é um lugar de poder. Hoje, cortesia da pusilanimidade e da burrice da direita brasileira, esse lugar está ocupado por Bolsonaro. Se amanhã Tarcísio de Freitas se elege presidente, o posto de “anti-Lula” ou de “anti-PT” passará obrigatoriamente a ser ocupado por ele. Não foi por outra razão que, numa de suas muitas entrevistas desde as sanções do Laranjão, Dudu Bananinha deixou escapar que talvez fosse melhor perder a próxima eleição presidencial com um Bolsonaro do que “ganhá-la” com Tarcísio.

Seja como for, resta aos verdadeiros democratas enfrentar novamente mais essa ameaça à democracia e garantir que, depois de condenados, os golpistas passem uma boa e longa temporada na cadeia. Como já se disse aqui mais de uma vez, não estamos mais em 1964, muito menos em 1979.

Anistia?

Nunca mais.

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