As sanções contra Xandão, ou Bye, bye, Brother

Aconteceu o que se esperava.

Depois de anunciar desde o começo do ano que Donald Trump viria com tudo pra cima do Judiciário brasileiro para salvar seu pai, Eduardo Bolsonaro enfim pode comemorar uma vitória. Ontem, o Nero Laranja assinou uma ordem executiva determinando a aplicação da agora famosa “Lei Magnitsky” contra Alexandre de Moraes. Além das sanções contra o ministro do Supremo, o Laranjão confirmou a tarifação de 50% sobre os produtos brasileiros exportados para a terra do Tio Sam. O pretexto, claro, é a “caça às bruxas” a Jair Bolsonaro e a “censura” praticada pelo Supremo nas redes sociais.

Que se trata de uma escalada, não resta a menor dúvida. Nunca, na história de mais de 200 anos entre Brasil e Estados Unidos, houve algo do gênero. Pior. Nunca uma medida tão drástica foi aplicada contra uma nação amiga. Antes, esse “privilégio” era reservado a regimes párias, como a Coréia do Norte ou a Venezuela, ou a notórios inimigos geopolíticos, como a Rússia e a China. Pela primeira vez na história, os Estados Unidos se dispõem a sancionar um membro de poder de um regime democrático.

Trata-se, como parece óbvio, de uma instrumentalização estapafúrdia de um instrumento originalmente concebido para fins nobres. A Lei Magnitsky leva esse nome em homenagem a um auditor fiscal russo chamado Sergei Magnitsky. Magnistsky prestava seus serviços a um escritório de advocacia em Moscou. Entre os clientes do escritório, estava a Hermitage Capital Management, uma empresa pertencente ao investidor e ativista britânico Bill Browder. Browder foi expulso da Rússia sob a alegação de que era uma “ameaça nacional” (parece familiar?).

Após a expulsão de Browder, autoridades russas tentaram extorquir do britânico dezenas de milhões de dólares em supostos impostos não pagos por uma de suas empresas. Browder, então, pediu para Magnitsky investigar o caso. Em suas investigações, Magnistsky descobriu que tudo não passava de uma grande armação e meteu a boca no trombone. Depois de acusar todo mundo, Magnitsky foi preso. No cárcere, foi torturado e morto, sem que a família tivesse sequer o direito de visitá-lo. Alguns anos depois, Obama conseguiu que o Congresso norte-americano, numa rara atuação bipartidária, aprovasse a lei em sua homenagem, destinada a punir graves violações a direitos humanos de cidadãos residentes em outros países.

Deixemos de lado, por ora, o fato de que nenhum país ou entidade séria no mundo entende que o Brasil é uma ditadura. Deixemos de lado, também, o fato de que Jair Bolsonaro é um golpista confesso e responde a um processo com todas garantias que uma democracia é capaz de oferecer. Deixemos de lado até o fato de que o próprio Bill Browder, responsável indireto pela Lei Magnitsky, afirmou não enxergar fundamento legal para sancionar Xandão com base nela. A pergunta é: quais são os impactos dessa determinação daqui pra frente?

Do ponto de vista prático, pouca coisa muda. Jair continua réu, Alexandre de Moraes continua ministro do Supremo e o processo relatado pelo primeiro contra o segundo caminha para seu julgamento. É verdade que Xandão pode ter algum problema em transacionar em dólar ou possuir cartões com bandeiras norte-americanas (Visa e Master, principalmente). Mas, para quem dispõe de pix e cartões Elo, reconheça-se que as sanções não são lá grande empecilho para o dia-a-dia.

Do ponto de vista jurídico, há pouco a se fazer. A medida é claramente ilegal, mas, pelos seus próprios termos, submete-se a um juízo praticamente discricionário do Presidente dos Estados Unidos. Ao contrário do Brasil, em que praticamente todo e qualquer ato legal ou infralegal pode ser contestado judicialmente, na terra do Tio Sam nem sempre isso é possível. Considerando que a Suprema Corte, com sua atual maioria ultraconservadora de 6×3, não tem oferecido qualquer resistência aos avanços do Laranjão sobre a democracia norte-americana, parece difícil acreditar que a sanção possa ser revertida pela via judicial.

Do ponto de vista das relações internacionais, contudo, a coisa muda de figura. Até a segunda eleição de Donald Trump, os Estados Unidos costumavam se vender ao mundo como uma espécie de “reserva moral” do planeta, os “defensores do bem”, espelhados em personagens fictícios como o “Super-Homem” ou o “Capitão América”. Isso nunca foi lá grande verdade. Não é preciso recuar-se longe na história para ver episódios como a invasão do Iraque por George W. Bush, baseada em alegações claramente fictícias de que Saddam possuiria armas de destruição em massa.

Mesmo assim, não passava pela cabeça de ninguém que os Estados Unidos fossem atuar como verdadeiros bullies geopolíticos, valendo-se da sua hegemonia militar e econômica para dobrar países menores à sua vontade. A instrumentalização política de uma lei concebida da Lei Magnitsky talvez seja a pá de cal numa longa lista de danos autoinfligidos pelos americanos ao seu próprio país.

Pode parecer banal, mas não é pouca coisa. Trata-se de usar uma lei concebida inicialmente para defender a democracia em países onde impera uma ditadura para favorecer um aliado político de ocasião. E não qualquer aliado, mas um sujeito que, assim como Trump, perdeu a eleição e tentou melar a transição para continuar no poder – o oposto do que se pretende numa democracia. Não é apenas hipocrisia. É uma inversão completa de valores.

Se antes os Estados Unidos se autoproclamavam os “defensores do mundo livre”, daqui pra frente tudo isso acabou. Conforme relatado aqui, o Estados Unidos e, principalmente, o dólar e os títulos do Tesouro norte-americano, eram tidos como grande safe haven do mundo. Agora, com a instabilidade jurídica e geopolítica provocada pelo Nero dos nossos tempos, todos os países, em todos os cantos do mundo, estão em busca de uma alternativa ao Grande Irmão do Norte. Ao invés de todas as estradas levarem a Roma, agora, ao contrário, todos os caminhos conduzem para um mundo em que se dependa cada vez menos dos Estados Unidos.

É claro que é uma boa notícia Trump ter isentado alguns produtos do tarifaço produzido por ele. Mesmo assim, seria erro imaginar que essa é uma situação estável. Da economia aos acordos internacionais, dos produtos agrícolas às compras de equipamentos militares, a ordem para o Brasil, daqui pra frente, deve ser uma só: como podemos fazer para não estarmos mais nas mãos desses caras?

Donald Trump um dia vai passar e, com alguma sorte, algum ser minimamente razoável assumirá o inquilinato da Casa Branca. Todavia, as cicatrizes deixadas pelo Laranjão nas relações bilaterais com o Brasil não vão sarar tão cedo. Como gosta de repetir o cientista político Christian Lynch, as sanções comerciais contra o Brasil e a aplicação da Lei Magnitsky contra Alexandre de Moraes representam o maior ato de agressão externa que o Brasil sofreu desde quando submarinos nazistas bombardearam cargueiros na nossa costa.

Para um país que se acostumou a viver tendo os Estados Unidos como exemplo de economia e de sociedade, será duro dizer: “Bye, bye, Brother”.

Mas vai ser necessário…

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