Quando aqui se escreveu que, com a ascensão de Donald Trump novamente à presidência dos Estados Unidos, o mundo em geral – e o Brasil, em particular – viveriam em estado de tensão permanente, muita gente não levou a sério. Parece que foi preciso o Nero Laranja resolver vir realmente pra cima das instituições brasileiras pra galera acordar. Mas antes tarde do que nunca.
Quem acompanha o noticiário deve ter visto mais uma vez a notícia de um processo movido pelas empresas de mídia social Rumble e Truth contra Alexandre de Moraes. Nesse processo, as empresas alegam que o ministro do Supremo estaria tentando censurar “cidadãos em solo americano” e que, por isso, deveria ser punido. O fundamento dessa ação seria uma defesa da Primeira Emenda à Constituição dos Estados Unidos da América, a estabelecer plena liberdade de expressão na terra dos founding fathers.
O processo é uma aberração jurídica, do começo ao fim. Os “cidadãos em solo americano” alegadamente atingidos pelas ordens de Moraes são, por exemplo, o neto do ex-ditador João Figueiredo, Paulo Figueiredo, e o “comentarista/jornalista” Allan dos Santos. Ambos são foragidos da justiça brasileira e aqui estão sendo processados por crimes contra a democracia.
Fora isso, é no mínimo curioso ver Trump e companhia vociferando pela “liberdade de expressão” quando deportam estudantes de universidades simplesmente por se manifestarem contra políticas do seu governo. Isso, claro, para não falar do bisonho episódio do mesatenista Hugo Calderano, barrado na imigração do Tio Sam por tido o “despautério” de ir jogar o Panamericano em Cuba.
O processo contra Moraes é uma aberração jurídica porque quem tomou as decisões reputadas como “censórias” não foi Xandão na pessoa física, mas o Ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes. Quando assina qualquer ordem, Xandão não está agindo em nome próprio, mas em nome da Corte que integra e, portanto, do próprio Estado brasileiro. Ainda que suas decisões não houvessem sido referendadas pelos outros ministros – e quase todas o foram – o fato é que qualquer segundanista de Direito consegue compreender que, quando um Ministro do STF decide alguma coisa, não é o cidadão nele encarnado que determina o que quer que seja, mas a autoridade do cargo no qual ele está investido.
Não é por acaso, portanto, que a nossa Constituição Federal previu, em seu art. 37, §6º, que “as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.
A famosa “responsabilidade objetiva” da Administração Pública pelos atos de seus agentes não é somente uma provisão em benefício do cidadão, mas também do servidor que a integra. Este somente pode ser responsabilizado na “pessoa física” numa ação de regresso, ou seja, se – e somente se: 1) o ente público (federal, estadual ou municipal) for condenado na ação judicial; e 2) o agente tenha agido com dolo (intenção deliberada de praticar o ilícito) ou culpa (ter agido com imprudência, negligência ou imperícia). Fora disso, não há falar em responsabilização pessoal do agente público.
Isto posto, torna-se ainda mais bizarro imaginar que uma corte norte-americana – seja ela qual for – possa ter jurisdição sobre o Estado brasileiro. A imunidade de jurisdição do estado estrangeiro é um dos princípios mais básicos e elementares do Direito Internacional. Trata-se de decorrência lógica do princípio da soberania e das próprias limitações materiais para o exercício da jurisdição. Se a jurisdição implica o poder de dizer o Direito em última instância e, no limite, impor à força a sua obediência, como um tribunal de um país vai obrigar o tribunal de outro caso este se recuse a cumprir a sua determinação?
Bem se vê, portanto, que o limite territorial do poder do Judiciário de qualquer país são as suas fronteiras. Para além delas, uma decisão somente será válida e eficaz caso: 1) o outro país aceite de bom grado cumprir a determinação (o que acontece, por exemplo, em casos de extradição); 2) o país emissor da decisão resolva entrar em guerra contra o outro para fazer valer sua vontade. Logo, a menos que o Laranjão esteja pensando em declarar guerra ao Brasil, tudo que aconteceu até aqui é só espuma.
Na verdade, toda esse barulho envolvendo o caso do processo contra Xandão – incluindo o infame tweet de ontem denunciando a “perseguição política” a Jair Bolsonaro – serve apenas para excitar a malta bolsonarista nas redes insociáveis e, também, como uma espécie de bullying processual contra o ministro Alexandre de Moraes. A idéia, claro, é tentar coagir e constranger qualquer medida que imponha regulamentação às redes sociais, assim como, por tabela, impedir o Brasil de se alinhar ainda mais aos Brics e à China, que possuem, segundo o Nero Laranja, “políticas anti-americanas”.
Antes que alguém pense que isso tem a ver com o suposto lobby do autoexilado Eduardo “Bananinha” Bolsonaro junto ao Trump, convém olhar de novo quem são as partes do processo: Truth, a empresa de rede social do Laranjão; e Rumble, a empresa da qual ele se tornou parceiro em 2021. Sim, o que está em jogo é grana. Muita grana. Bolsonaro e sua trupe são apenas um efeito colateral indesejado dessa briga por dinheiro.
Se Donald Trump quiser tratar o Brasil como uma República de Bananas, muito bem; vã em frente. Cabe às instituições nacionais e aos verdadeiros patriotas – não aqueles que vestem a camisa da seleção para pedir golpe aos quartéis – defender a Nação contra essa flagrante intervenção indevida na nossa soberania. A América Latina já foi o quintal dos Estados Unidos por muito tempo.
Hoje, não mais.