A obra é conhecida, mas vale sempre a pena recordá-la.
O Príncipe de Salina cuida da sua família e de sua querida Sicília como se ambas fossem extensão de sua casa. Com os trejeitos típicos de um senhor feudal, o “Gattopardo” (Leopardo) – o apelido do Príncipe – observa com desconfiança a unificação da Itália e as mudanças sociais que a acompanham. Entre seus parentes, um sobrinho espoletado, metido a subversivo, chamado Trancredi. Tancredi resolve se juntar aos revoltosos, apoiando a unificação. Atônito por ver o sujeito de quem cuidara a vida inteira indo para um lado oposto ao seu, o Príncipe de Salina procura entender as razões que movem as ações do sobrinho. É quando Tancredi explica ao tio:
“Se vogliamo che tutto rimanga com’è, bisogna che tutto cambi“.
Desde então, a obra de Tomasi di Lampedusa imortalizou a expressão gattopardismo, sinônimo de ações políticas que, através de reformas cosméticas, pretende apenas manter o status quo. Tal é a conclusão a que se chega depois da escolha de Carlo Ancelotti para dirigir a seleção brasileira de futebol.
Nada contra ele, que fique bem claro. Meio de campo de estilo refinado, Ancelotti ostenta em seu currículo como técnico nada menos do que oito Champions League e cinco Copas da Uefa, recorde absoluto entre os técnicos europeus. Fez bons trabalhos em praticamente todos os times por que passou, sendo também o único exemplar da espécie a conquistar os títulos das cinco maiores ligas européias (Espanha, Itália, Alemanha, Inglaterra e França). O problema, na verdade, está em quem o contratou.
Já há muito tempo, a Confederação Brasileira de Futebol transformou-se em um palco para negociatas de seus dirigentes. Dos últimos cinco presidentes, três foram banidos do futebol (Ricardo Teixeira, José Maria Marin e Marco Polo del Nero) por se envolverem em corrupção esportiva. O último, Ednaldo Rodrigues, mantinha-se no cargo graças a uma liminar meio mandrake do Ministro Gilmar Mendes. Quando se descobriu a falsificação de uma assinatura de seu vice em um documento referente à eleição da entidade, o próprio Gilmar Mendes roeu-lhe a corda e deixou-o sem chão. Assume, agora, o ilustre desconhecido Samir Xaud, cujas “contribuições” futebolísticas resumem-se ao exercício do cargo de presidente da Federação Roraimense de Futebol.
Não é preciso ser nenhum gênio para saber que, em um cenário desses, boa coisa não tem como vir. Com a casa completamente desarrumada e sem nada que possa sequer se comparar a um planejamento, é difícil acreditar que o futebol brasileiro possa reviver glórias passadas, como chegar a uma final de Copa do Mundo. Menor ainda é a crença de que essa galera possa trazer para o Brasil o caneco que não vem desde 2002, naquela que já é a maior seca de títulos mundiais desde que Bellini levantou a Jules Rimet pela primeira vez em 1958.
Para além disso, a euforia em torno de Ancelotti ignora o fato de que o problema do Brasil não é de técnico. Não há nenhum grande filósofo do futebol sentado no banco de algum grande time brasileiro, é verdade. Mas nossas principais dificuldades estão dentro das quatro linhas. Pare só um instante para pensar: qual foi o último grande craque que o Brasil produziu?
Se você pensou “Neymar”, melhor pensar novamente. Não só aquele “menino” que prometia explodir no começo da década passada ficou pelo caminho, como há praticamente dois anos ele mal pisa em campo. Para quem, como este que vos escreve, é extremamente rigoroso no emprego da palavra, a triste verdade é que os últimos craques que vestiram a famosa amarelinha datam justamente da virada do milênio, quando gente como Rivaldo e Ronaldo levaram o Brasil ao penta no Japão.
De lá pra cá, o que se assistiu foi uma verdadeira série de “oba-oba” em cima de gente que prometia muito – como Kaká, Ronaldinho Gaúcho e Neymar – que, no final das contas, entregou muito pouco em termos de seleção brasileira. Há, claro, boas promessas, como Vinícius Jr., treinado pelo próprio Ancelotti no Real Madrid. Mas, para ganhar a alcunha de “craque”, Vini Jr. ainda vai ter de ralar um bocado.
Tudo isso considerado, fica claro que a contratação de Ancelotti para treinar o escrete canarinho é muito mais uma jogada de marketing para abafar os escândalos de corrupção e a verdadeira balbúrdia institucional que se assenhorou da CBF na última década e meia do que propriamente um turning point que permitirá ao brasileiro realmente acreditar que “agora é pra valer”. No final das contas, o que os dirigentes da CBF estão fazendo é aplicar os ensinamentos de Lampedusa, mesmo sem ter lido sua obra.
Tancredi estava certo:
“Se quisermos que tudo permaneça como está, é preciso que tudo mude”.