Como (não) fazer ciúmes à namorada

Marina sempre foi bonita. Nunca fez o tipo “mulherão”, até porque a altura não muito avantajada não lhe permitia sair por aí desfilando como uma dessas modelos de passarela. Mesmo assim, seu rosto era tecnicamente perfeito. Parecia uma boneca de porcelana desenhada pelas mãos de um Botticelli. Seu sorriso aberto conseguia hipnotizar mesmo os corações mais fechados. Não, o espelho nunca fez cara feia para Marina.

Carlo, por sua vez, era o oposto. Ou, por outra, não exatamente o oposto, mas não havia um atributo físico que se destacasse nele. Fazia o tipo do sujeito comum: altura comum, rosto comum, cabelo comum. Nem mesmo os olhos verdes eram capazes de fazer tremer nas pernas as gurias que lhe atravessassem o olhar. Se havia algo que era fora do comum em Carlo era a sua completa ausência de bunda. Não que ele tivesse algum transtorno físico ou algum problema médico, mas o vácuo de protuberância naquela porção das costas que fica entre a lombar e o posterior das coxas fazia com que seu perfil se assemelhasse ao de uma tábua de passar roupas andando sobre duas pernas.

Quis o destino, porém, que esse casal improvável se formasse. Por esses mistérios que só o coração pode explicar, Marina caiu de amores por Carlo. O contraste entre os dois andando de mãos dadas parecia o retrato em concreto da máxima segundo a qual “o amor é cego, mas os vizinhos não”. Marina continuava sendo observada e desejada pelos garotos da vizinhança, enquanto Carlo, no máximo, era objeto de curiosidade pelas meninas: “Mas o que foi que ela viu nele, afinal?”

Conhecedor das circunstâncias, Carlo ficava de certa forma com a autoestima em xeque. Para “compensar” a avareza com que a natureza lhe presenteara de anatomia, aproveitava cada oportunidade que tinha para provocar ciúmes em Marina. Segundo ele pensava, a melhor defesa era o ataque. Logo, se ela sentisse ciúmes dele, ele não precisaria se preocupar em perdê-la para outro ser anatomicamente mais favorecido.

Marina, contudo, pouco se importava com as provocações de Carlo. Pelo contrário. Toda vez que ele tentava aplicar essa tática, Marina vinha do outro lado tirando de letra, com uma resposta na lata. Quando o namorado relatou-lhe que uma colega de trabalho havia se insinuado pra ele durante o cafezinho, Marina não hesitou em concluir:

“Que bom, amor. Ela pode então pedir aumento, já que ela está trabalhando de graça”.

Entretanto, Carlo não desistia. Como ambos quisessem ir a uma discoteca curtir os embalos de sábado à noite, Carlo decidiu que, dessa vez, deixaria Marina realmente com ciúmes. Sabe-se lá por quê, Carlo achou que seria uma boa idéia ir com uma daquelas causas strecht, cujo caimento se amolda aos membros inferiores do sujeito quase como uma segunda pele.

Se isso já pareceria ridículo em um sujeito, digamos, “anatomicamente normal”, imagina numa figura que não tinha bunda. Era como se o tronco emendasse com as pernas, transformando Carlo numa variante humana de um boneco de Playmobil. No meio da festa, Carlo pede licença a Marina para ir ao banheiro. Na volta, ele aplica o golpe:

“Amor, aconteceu uma coisa estranha. Não sei se eu deveria te dizer, mas uma mulher passou a mão na minha bunda”, disse Carlo, com ar meio sério.

“Como isso aconteceu?”, perguntou uma aturdida Marina.

“Pois é. Tá vendo como a discoteca tá lotada? Teve uma hora na fila do banheiro que tinha um monte de gente aglomerada. Aí eu senti uma mão passando na minha bunda. Quando olhei pra trás, era uma menina, que só fez sorrir pra mim”, tentou explicar Carlo.

“Foi mesmo? Pois eu quero saber onde é que está essa mulher!”, respondeu Marina, exclamando.

“Por quê, amor? Você vai bater nela? Não precisa ficar com ciúmes. Você sabe que eu sou só seu”, disse Carlo, quase deixando escapar um sorriso de satisfação entre os lábios.

“Não, não é isso”, falou Marina. “Eu quero saber como foi que ela conseguiu fazer esse movimento de pinça, pra passar a mão em algo que nem existe direito”.

Em seguida, ambos caíram na gargalhada.

E foi assim que Carlo nunca mais inventou de fazer ciúme para a namorada…

Esta entrada foi publicada em Crônicas do cotidiano e marcada com a tag , , , . Adicione o link permanente aos seus favoritos.

Deixe um comentário

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.