Amizade tardia

Raul sempre fora um crente na Justiça. Desde os tempos de colégio, quando a perseguição promovida pelos coordenadores de disciplina lhe inspiraram a tornar-se advogado, Raul desenvolveu o inconformismo como moto de vida. Ao chegar na Faculdade, cheio de sonhos, o pretendente a causídico só pensava nos tipos de causas que pegaria quando se formasse. Nenhuma do crime, por óbvio, pois havia uma intenção real de advogar para causas verdadeiramente justas, ou seja, aquelas em que o sujeito realmente tem razão no que pede. O tempo, contudo, encarregou-se de desfazer essa doce ilusão rapidamente.

Logo no seu primeiro ano portando a carteirinha da OAB, Raul pegou a causa de um servidor público federal. Assim como ele na escola, este servidor havia sido perseguido impiedosamente pela direção do órgão ao qual ele estava vinculado. O Diretor-Geral da instituição, sentindo-se ultrajado em sua autoridade pelo servidor “desobediente”, resolvera abrir dois PADs contra a figura. A intenção era declarada: demitir o sujeito, não importava o que custasse. Para isso, valia tudo: mudar a comissão do PAD, depois da primeira indicar que votaria contra a demissão; aplicar lei revogada; e, no limite, até mesmo nomear para presidir o segundo PAD o mesmo servidor que denunciara a suposta infração. Tudo para garantir que a sanha vingativa do Diretor-Geral alcançasse a finalidade pretendida.

O caso era tão esdrúxulo que até mesmo a Justiça Federal local, conhecida por ser “fazendária” – isto é, ser pró-governo e contra o cidadão – mandou suspender os PADs, impedindo que o servidor fosse demitido. Em um dos casos, porém, a Direção do órgão, chateada com o que considerava uma “intervenção” indevida do Judiciário nos desígnios do seu chefe, ficou remanchando o cumprimento da obrigação. Foram necessários seis meses e três ordens judiciais explícitas, com aplicação de multa à União, para que enfim o órgão publicasse a portaria determinando a suspensão do PAD.

Finda a causa, era hora de ir à desforra. Afinal, não bastava apenas impedir que o sujeito fosse demitido. Para que a Justiça se aplicasse por completo, era necessário cobrar da União a multa pelo descumprimento da decisão. A idéia era menos fazer com que o sujeito fosse “recompensado” pela perseguição, e mais punir o Diretor-Geral, que seria cobrado posteriormente pela própria União, uma vez que tinha sido ele o responsável direto pelo descumprimento da ordem judicial.

Embora os dispositivos legais fossem claros, o juiz que julgara a causa inicialmente tinha acabado de ser removido para outra localidade. Quem ficou responsável pelo caso foi um daqueles juízes que vestem a toga, mas desempenham melhor o papel de advogado da União. Com o propósito de mitigar essa frustração existencial, tais juízes não hesitam em abandonar a imparcialidade para fincar bandeira ao lado do Governo. E dane-se se isso viola a paridade de armas entre as partes.

Numa decisão completamente sem pé nem cabeça, o juiz negou o pagamento da multa, alegando simplesmente – veja você – que a decisão não havia sido descumprida. O “atraso” de seis meses teria se dado por conta da “burocracia” interna do órgão. Ao melhor estilo passador de pano, o juiz ainda achou por bem tirar onda com o pedido de Raul, dizendo que no seu pedido “sobrava retórica, mas faltava base jurídica”.

O tempo passou, mas aquela cicatriz ficou marcada na alma daquele jovem advogado. Mais de uma década depois, Raul já se tornara um advogado conhecido, mestre e doutor em Direito, livros publicados, requisitado para dar aulas e palestras em várias universidades. Numa dessas ironias do destino, Raul foi chamado para participar de um seminário numa determinada faculdade. Na sua mesa, estaria justamente o juiz federal que havia tirado onda com a sua cara.

Sem se recordar do episódio, o juiz veio cumprimentar Raul todo pimpão. Simpático, o magistrado – agora desembargador – quis fazer-se de amigo, quando do outro lado havia apenas uma pedra de gelo, quase um iceberg, de tão frio que era Raul ao responder às investidas do sujeito. Era muito fácil querer tornar-se amigo do palestrante famoso. Difícil mesmo era tratar com justiça uma causa certa e respeitar um advogado em começo de carreira, com a caneta de juiz na mão.

Sem entender a aversão comportamental do palestrante, o juiz insistiu:

“Dr. Raul, aconteceu alguma coisa? O senhor está tão monossilábico nas suas respostas…”

“Sim, Dr. Aconteceu”.

Foi quando Raul pôs-se a relatar o caso de anos atrás e recordou ao magistrado a injustiça que ele havia cometido naquela ocasião.

“Mas Dr. Raul, essas coisas acontecem. Veja bem: agora você é um advogado respeitado, eu sou desembargador. São tantas as coisas que a gente pode fazer juntos agora”, respondeu o magistrado, pretendendo uma intimidade que Raul claramente não desejava. Após alguns segundos de constrangedor silêncio, o agora desembargador mordeu o lábio. Subitamente reduzido à condição de suplicante, o juiz insistiu pelo armistício uma última vez:

“Não há nada que eu possa fazer pelo senhor agora?”, perguntou o magistrado, em voz baixa.

Raul apenas sorriu e respondeu na lata:

— Sim, Desembargador. Mantenha distância.

E foi assim que aquele juiz descobriu que, às vezes, a Justiça levanta a venda para piscar, nem que seja ironicamente…

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