Aluno afiado

Poucas fases na vida são mais divertidas do que a adolescência. Para além dos perrengues naturais de quem se encontra naquele miolo em que não se é “nem tão jovem que possa ser considerado criança” e “nem tão velho que possa ser considerado adulto”, o adolescente parece aproveitar cada oportunidade para curtir a vida. Quando isso não é possível, ele aproveita para tirar onda com a cara dos outros. Esse, pelo menos, era o pensamento de Raul.

O ambiente, contudo, não era dos mais propícios para desenvolver a sua veia cômica. O colégio em que ele estudava – o XV de Novembro – era conhecido pelo rigor disciplinar e os coordenadores faziam questão de usar o terror como método de dissuasão pedagógica. Se o Piaget não funcionava, o esquema era recorrer ao Pinochet. E havia vários pretendentes a ditador chileno naquele educandário específico.

Nem tudo eram espinhos, entretanto. Havia professores legais, que não só aceitavam que os alunos tirassem onda com eles, como também se permitiam tirar onda com os alunos. Márcio era desses. Professor de redação, Márcio já estava cansado de corrigir textos sobre “as minhas férias preferidas”. Mesmo assim, conduzia estoicamente as aulas, sempre aproveitando a versatilidade da língua portuguesa para enfiar algum gracejo entre os ensinamentos. Não era exatamente o maior conhecedor da matéria, mas se fez popular pela simpatia.

Quando aparecia um daqueles temas batidos, do tipo “você está à noite numa casa escura e, de repente, surge um barulho”, Raul escrevia textos non sense. Pra piorar, ele ainda assinava com pseudônimos do tipo “Alejandro José Arturo Gonzáles”. Márcio levava as brincadeiras na esportiva. Corrigia os textos sem sentido e ainda colocava a seguinte mensagem na parte em que o autor supostamente se identificava: “Quem é você?”

Como os alunos gostavam de trocar ideias e experiências, Márcio acabava vez por outra sendo assunto do alunato na hora do recreio. Conversando com Clarissa, uma amiga de outra série, Raul comentava o quanto gostava de se divertir com Márcio nas aulas de redação. Clarissa ainda não chegara à série de Raul, mas conhecia o professor pelo fato de ele já ter ficado com uma prima dela. O que, para Clarissa, era motivo de algum espanto. Por mais popular que fosse, Márcio não era exatamente um protótipo de beleza. Ao contrário. Algumas feições proeminentes do rosto de certa forma lhe conferiam um ar semelhante ao do Topo Gigio.

“Ele não é aquele dos dentões?”, perguntou Clarissa.

“Esse mesmo”, respondeu Raul, rindo.

Como Raul era daqueles que perdia o professor, mas não perdia a piada, aproveitou a conversa com Clarissa para tirar onda com Márcio.

“Professor, eu tava falando com uma amiga minha no recreio e ela comentou que você tinha ficado com uma prima dela. Ela inclusive achou estranho, porque logo em seguida ela complementou: ‘Não é aquele com os dentes grandes?’”, provocou Raul.

Márcio não se deu por achado. Devolvendo a brincadeira, ele respondeu sorrindo a Raul:

“Mas ela falou de outra coisa que também era grande?”

Raul foi pego de surpresa com o contra-ataque imediato, mas raciocinou rápido em defesa da amiga:

“Falou, sim. As orelhas”.

Ambos caíram na gargalhada.

E foi assim que Márcio descobriu que não adiantava ter mais repertório do que seus alunos se estes eram mais afiados do que ele…

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