E já que no dia de hoje também se comemora o dia nacional da poesia, vamos a um dos primeiros posts deste espaço, quando o poeta que em mim habita ainda tentava dar as caras por aqui.
É o que você vai entender, lendo.
Por uma poesia de transformação
Publicado originalmente em 28.3.11
Revoluções são episódios únicos, que acontecem só de tempos em tempos.
O mecanismo de uma revolução é exatamente o mesmo que leva você chutar o balde: é preciso estar de saco chieo com alguma coisa. À diferença do balde à distância, a revolução necessita que outras pessoas estejam de saco cheio junto com você.
No começo do século XX, as condições para uma revolução artística no Brasil estavam dadas. O mundo passara por uma Grande Guerra, que matara 50 milhões de pessoas. Vivia-se uma paz armada que, com o tempo, levaria a outra guerra mundial. Para usar uma expressão da época, era como se todos estivessem a dançar sobre um barril de pólvora. Isso no plano internacional.
Nas terras tupiniquins, vivia-se uma sociedade autista. O mundo em ebulição, a miséria crescendo a olhos vistos, um país eternamente dependente do café para equilibrar a balança de pagamentos (importações x exportações) e um rodízio de presidentes mineiros e paulistas que aparentava ser para sempre.
Estávamos alienados; essa era a verdade.
Alguns intelectuais da época achavam que era preciso agitar. Balançar o coreto, mesmo. Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, Mário de Andrade, Manuel Bandeira…escritores, pintores, poetas, artistas…essa gente que tem um pé neste mundo e o outro no outro, acharam por bem montar uma Semana de Arte.
E assim surgiu a Semana de Arte Moderna de 1922.
Foi um choque. Ninguém estava preparado para aquilo. Pinturas não convencionais, escritos não prolixos, liberdade de formas, a Semana de Arte Moderna representou uma verdadeira revolução artística e – por que não dizer? – política no país. Tudo isso parecia estranho a um público acostumado a não pensar, a não criticar, a aceitar passivamente as mensagens vazias que as artes lhe transmitiam.
Na poesia – tema deste post – queria-se romper com a camisa-de-força mental que imperava naquele tempo. Vivia-se o parnasianismo, movimento literário que primava pela “forma pela forma”. Dane-se o conteúdo. O que importa é se o poema é esteticamente bonito. Vaso Chinês, de Alberto de Oliveira, é o exemplo perfeito do poema parnasianista. Um sujeito descrevendo, nos mínimos detalhes, a estrutura de um vaso chinês. Algo tão belo quanto vazio.
Os poetas modernistas queriam mais. Queriam fazer com que os leitores pensassem. Queriam sacudi-lo na cadeira e fazer interagir – para mudar – a realidade à sua volta.
Manuel Bandeira era um deles. Tuberculoso, inteligentíssimo e irriquieto, Manuel Bandeira era um típico pernambucano: reclamão. Olhava para o mundo e não gostava do que via, e gostava de dizer isso em voz alta.
Um dos seus mais belos poemas é Poética. Poética é uma verdadeira ode ao modernismo. É um grito libertário:
Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Em outras palavras: tô de saco cheio.
A conclusão é impiedosa:
Abaixo os puristas!
Para isso, Bandeira dá o tom que se deve seguir:
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
E lança uma pá de cal à alienação passada:
– Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.
Acho que ele queria dizer o seguinte: mude o mundo. Entregar-se à pasmaceira é tudo o que não se pode fazer.
Abaixo, a íntegra do poema:
POÉTICA
Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto espediente protocolo e manifestações de apreço ao sr. diretor.
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas.
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo.
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc.
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbados
O lirismo difícil e pungente dos bêbados
O lirismo dos clowns de Shakespeare.
– Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.