Dona Florinda sempre foi aquela pessoa que cuidava de todo o mundio. Da tia ao sobrinho, do gato ao cachorro, praticamente nenhum membro da família deixava de estar ao seu abrigo. Não porque a família a explorasse, nem tampouco ela se sentia explorada. Os cuidados eram mais uma manifestação de afeto, dada de bom grado em troca de um sorriso no rosto e um abraço ao final do dia.
Seu temperamento, contudo, não era exatamente dos mais dóceis. Criada no interior do Ceará, Dona Florinda conhecera a fundo o que era uma a sociedade patriarcal e machista que imperava no Brasil até os anos 60. Ela não desapareceu de lá pra cá, mas se insurgir contra esse status quo deixou de ser tabu e encarado com preconceito desde pelo menos a década de 90. Por isso mesmo, sempre aprendeu a responder na lata e a não deixar que homens (logo eles!) viessem a tentar cantar de galo sobre ela.
Mãe de três filhas, Dona Florinda convocou a caçula, Gena, para levá-la ao supermercado. Não, não era para fazer as compras do mês, mas para aproveitar uma promoção de sabão líquido em um estabelecimento específico. A oferta era de um galão de 5 litros por apenas R$ 15,00. O estoque se esgotaria rápido, obviamente. Dona Florinda, contudo, ainda chegou a tempo de alcançar a quantidade de galões suficiente para encher o porta-malas da filha com a preciosa composição utilizada nas máquinas de lavar roupa.
“Pra que tanto sabão?”, deve estar se perguntando você.
Apesar de todas as filhas estarem criadas, Dona Florinda ainda mantinha por hábito lavar as roupas de todas em casa. Depois de limpas, as roupas eram passadas e devolvidas às filhas limpinhas e cheirosas. Tanto era uma forma de ajudar as filhas, como também um pretexto para estar sempre nas casas delas a visitar os netos. A disposição era tanta que até duas irmãs mais novas de Dona Florinda tinham entrado no esquema de “delivery” e despachavam a roupa suja para que ela as lavasse.
Ao chegar em casa, o problema: era preciso levar aquele sabão todo para o apartamento. Como ambas só contavam cada uma com duas mãos e como cada galão pesava pouco mais de 5kg, era preciso pedir ajuda. Muito simpática, Gena conhecia todo mundo no prédio e pediu ajuda a um dos vizinhos. Muito solícito, o vizinho imediatamente se dispôs a ajudar a subir aquele horror de sabão. Com dois galãos em cada mão, lá foi o rapaz ajudar mãe e filha.
Todavia, enquanto caminhavam para o elevador, o vizinho – que calçava sandálias – acabou por tropeçar e fazer com que o pé se retorcesse por sobre o tornozelo. Embora desequilibrado, o moço ainda conseguiu se segurar numa coluna, evitando uma queda potencialmente mais perigosa. Assustada, Gena foi logo perguntando:
“Você tá bem?!? Eu vi o teu pé virando! Torceu?!?”
Recuperado do desequilíbrio, o vizinho tratou de acalmar a amiga:
“Não, não foi nada, não. Só virei o pé, mesmo, mas não chegou a torcer”.
Assistindo impávida a tudo que se passara, Dona Florinda apenas comentou:
“Ainda bem que ele não caiu. Imagina o tamanho do prejuízo que eu ia ter se ele derrubasse esses galões!”
Sem saber onde enfiar a cara, Gena limitou-se a retorquir:
“Mas, mãe, pelo amor de Deus! O rapaz quase que quebra o pé e a senhora preocupada com o galão de sabão líquido?!?”
A velha não se deu por achado:
“Mas é claro! O que é que eu vou fazer com esse pé dele? Cada galão desses são vinte rodadas de máquina com roupa suja”.
E foi assim que o vizinho descobriu que, entre os afazeres domésticos e a sua saúde ortopédica, Dona Florinda não hesitaria em sacrificar esta última…