Quem acompanha o Blog há algum tempo sabe que a véspera da festa da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood é tradicionalmente celebrada neste espaço com o Bolão do Oscar. Este ano, contudo, a banda tocará em outra toada. Afinal, não há como ignorar o fato de que o Brasil – sempre um espectador desprezado nessa festa norte-americana – será dessa vez protagonista; e um protagonista em grande estilo.
Lançado há alguns meses, o já imortal Ainda estou aqui conseguiu um feito inédito para o cinema brasileiro. Se antes a gente brigava para descolar uma vaguinha na categoria de Melhor Filme Estrangeiro – e ficava torcendo em vão por alguma zebra que nos trouxesse a estatueta – dessa vez a gente concorre também em duas das categorias mais nobres da premiação: Melhor Filme e Melhor Atriz. E não se trata apenas de concorrer por concorrer, mas de estar literalmente no páreo e, em alguns casos, ser até favorito para trazer o Oscar pra casa.
Com seu discreto atrevimento, Walter Salles conseguiu produzir uma película que é um verdadeiro soco no estômago. Enquanto o Oscar é uma festa originalmente projetada para celebrar a futilidade da fama, Ainda estou aqui traz para dentro dela o peso das urgências dos nossos tempos. Com o filme brasileiro na disputa pelo prêmio principal, a noite de domingo deixa de ser apenas uma disputa por estatuetas, mas se transforma em um embate simbólico entre a arte que denuncia e a política que insiste em repetir seus erros.
Dirigido por um cineasta que prefere o anonimato — talvez para evitar que sua obra seja reduzida a um manifesto partidário —, Ainda Estou Aqui narra a história de uma família dilacerada pela ausência de um pai desaparecido durante a ditadura militar. A trama se desenrola entre silêncios pesados e fotografias desbotadas, enquanto a mulher do ex-deputado Rubens Paiva, Eunice Paiva, busca reconstruir a memória do patriarca em meio aos escombros de um país que, décadas depois, ainda não enfrentou os seus fantasmas. O filme é, acima de tudo, um retrato íntimo do luto coletivo.
Trafegando numa linha tênue que separa a descrição silenciosa do medo e do luto de quem passou pelo que aquela família passou, Walter Salles parece atingir o ponto perfeito de equilíbrio. Um passo em falso e o filme inteiro poderia se precipitar na pieguice e no sentimentalismo barato. Salles escapa dessa casca de banana com maestria e sagacidade.
Para alcançar essa façanha, o cineasta conta com a atuação simplesmente brilhante de Fernanda Torres. Irreconhecível para quem cresceu assistindo suas atuações impagáveis em comédias como Os Normais, a sua Eunice Paiva é um verdadeiro terremoto contido. Sua personagem não grita; ela se despedaça em câmera lenta, só para depois se recompor sozinha, firme na força de quem sabe que terá de seguir com sua vida para criar os filhos do seu marido, sequestrado e morto pelos covardes torturadores da repressão.
Pode parecer pouco, mas em um país no qual, até outro dia, o mandatário do Planalto celebrava torturadores e negava a existência mesma da ditadura militar, a indicação de Ainda estou aqui é quase um manifesto histórico. Assim como o magistral Argentina 1985, o filme de Walter Salles serve de lembrete de que a arte, quando feita com coragem, vira espelho. Se vencer, será menos uma celebração da Academia e mais uma resposta àqueles que ainda sonham com porões escuros e gente indefesa pendurada em um pau de arara. Vivendo numa época em que a extrema direita global — de Trump a Milei, de Orban a Bolsonaro — tenta reescrever a história e glorificar opressores, o filme brasileiro vem para lembrar que não há como fingir nostalgia de um passado que nunca foi dourado.
Haverá, claro, quem critique a “politização da arte”. Mas essa é a crítica mais sem sentido de todos os tempos. A arte sempre foi política. Ainda Estou Aqui não esconde suas cores. Ele as usa como faixa de protesto. Se vencer, será uma derrota estrondosa para os que ainda vociferam nas redes insociáveis que ditadura é uma questão de “ponto de vista”.
Mas quais as chances efetivas de Fernanda Torres e Ainda estou aqui de levarem as estatuetas pra casa?
Em condições normais de temperatura e pressão, o mais provável é que mais uma vez ficássemos a chupar o dedo. Todavia, há chances nem um pouco negligenciáveis de que a noite do próximo domingo traga mais do que só a festa mundana do carnaval.
Na teoria, Emilia Pérez – com suas treze indicações – seria favoritaço tanto em melhor filme estrangeiro quanto em melhor filme. Porém, cortesia da descoberta do passado nebuloso da estrela do filme, Karla Sofia Gascón, o favoritismo passa de mala e cuia para Ainda estou aqui. Sim, somos favoritos nessa categoria e será uma triste surpresa se perdermos para qualquer outro concorrente aqui.
Já no caso de melhor atriz, a parada é mais dura. Não só porque Demi Moore de fato fez um bom trabalho em Substância, mas porque se trata de um daqueles “oscars de consolação”; um prêmio tardio para o reconhecimento de uma personagem que foi negligenciada pela Academia por tanto tempo. Fora isso, Demi Moore é uma figura bastante carismática e popular entre o público votante. Mesmo assim, como Deus é brasileiro e Fernanda Torres é filha da Fernanda Montenegro, vou arriscar que a Fernandinha vai beliscar essa estatueta e vingar a vergonhosa derrota de sua mãe para Gwyneth Paltrow há mais de vinte anos.
Por fim, no quesito melhor filme, tudo pode acontecer. Apesar de Karla Sofía Gascón, a Academia pode desconsiderar seu passado problemático e acabar rendendo homenagem a Emilia Pérez, premiando o filme com a estatueta principal. O Brutalista também é forte candidato, especialmente pela atuação soberba de Adrien Brody. A despeito da previsão dos cinéfilos, não boto muita fé em Duna 2, um filme tão completamente esquecível quanto a primeira parte. Por isso mesmo, vou cravar que Ainda estou aqui – para espanto geral – vai trazer um histórico Oscar de melhor filme para o Brasil.
No domingo, enquanto os holofotes iluminam o tapete vermelho e o país está distraído com as festas mominas, o Brasil estará lá em Hollywood. Não como o país do Carnaval ou o do futebol, mas como a nação que quer remexer suas cicatrizes para evitar que elas voltem a infeccionar.
E se as estatuetas forem para outros concorrentes?
Nesse caso, paciência. O Oscar, afinal, passa. A história, ao contrário, fica.