Ser pai – pai de verdade – é, antes de tudo, um sacerdócio. Trata-se de um processo de devoção profundo, em que você abdica de si mesmo em função do (a) seu (ua) filho(a). O deslocamento do centro de gravidade da sua vida para um ente externo a si próprio por vezes provoca grande angústia naqueles que ainda não estão preparados para um ato tão supremo de doação. Não por acaso, muitos pais jovens – que ainda não tiveram a chance de vivenciar os doces prazeres da vida – acabam se frustrando e descarregando a raiva dessa frustração nos seus descendentes. Daí a profusão de adolescentes em psicoterapias ou análises do gênero. Esse, contudo, não era o caso de Raul.
Formado em Direito, Raul sempre teve o sonho de subir na vida. Chegar ao Supremo, assim como chegar à Presidência da República, é mais um ato da sorte ou do destino do que propriamente o resultado de um processo meritocrático. Mas Raul estava disposto a fazer a sua parte. Como não dispusesse de conexões políticas suficientes para ser catapultado diretamente à mais alta corte do país, resolveu prestar concurso para servidor do STF. Evidentemente, não era o mesmo que ser ministro do Supremo, mas pelo menos ele estava lá, no meio dos caras, apto a mostrar o seu potencial para as mais reluzentes cabeças jurídicas do país.
Depois de algum tempo, um ministro se achegou a ele. Como Raul tinha um bom raciocínio e escrevia muito rápido, o ministro se valia dele como “coringa”. Quando aparecia alguma discussão de última hora no plenário da corte, sem que houvesse tempo para uma discussão mais aprofundada do assunto no gabinete, era Raul quem esse ministro consultava. Quando esse mesmo ministro, pelo rodízio da Corte, chegou à Presidência do Supremo, ele não teve dúvidas: nomeou Raul para ser seu chefe de gabinete.
Mas Raul não era somente chefe de gabinete do Presidente do Supremo Tribunal Federal. Antes disso – pelo menos em sua cabeça – era pai. E pai, como todo mundo sabe, tem de participar. Foi exatamente esse o pensamento que passou pela sua cabeça quando recebeu uma mensagem da escola.
Seu filho, aluno do sistema integral, iria participar de um festival de natação com os outros colegas de STI. Qual o problema? No mesmo horário, haveria a cerimônia de abertura das atividades do Supremo no segundo semestre. Não se trata de uma sessão regular, na qual os processos são julgados e os ministros discutem entre si. É apenas uma sequência de discursos, muitas vezes enfadonhos, que se sobrepõem sem que nada relevante esteja em causa.
Fazer o quê? Raul era chefe de gabinete do Presidente do Supremo e, pela precedência do cerimonial, seria ele o primeiro a falar. Ficaria no mínimo chato sair no meio da cerimônia, com os holofotes todos voltados ao seu chefe, para comparecer a uma apresentação – a ocasião não se enquadrava sequer no conceito de “competição” – do seu filho.
Para contornar o problema, Raul pensou numa solução: a disputa de natação ocorreria justamente no intervalo de tempo compreendido entre a abertura da cerimônia e o início do discurso do seu chefe. Como a sede da escola não era muito distante do prédio do Supremo, bastava ele dar as caras no começo, correr para a escola e, finda a cerimônia, correr de volta para estar presente ao discurso do chefe.
Essa “ginástica” toda o obrigaria a comparecer à competição do filho devidamente enfatiotado, o que, além de não compor o dress code da ocasião, atentaria contra a sua saúde física, já que o espaço da piscina era um dos mais quentes da escola. Paciência. Era o que dava pra fazer.
Chegando no dia da apresentação, Raul cumpriu à risca o planejado: deixou o filho da escola, correu para o Supremo, assistiu à abertura da cerimônia e correu de volta para estar presente à competição de natação. Ao chegar lá, todas as professoras estranharam a presença daquele pai trajando terno e gravata para comparecer a uma “simples” disputa de nado. Uma delas, a psicóloga, chegou para cumprimentá-lo, meio que fazendo graça:
“Gostei de ver. Todo pai deveria vir assim agora”, disse a psicóloga, sorrindo.
Entrando na onda, Raul emendou:
“Pois é. Inclusive eu deixei o Presidente do Supremo esperando para poder estar aqui com ela”.
O troco foi imediato:
“Não está fazendo mais do que a obrigação”, sentenciou a psicóloga.
E foi assim que Raul descobriu que, não importa o cargo que você ocupe, as obrigações parentais sempre vêm em primeiro lugar…