Hoje em dia isso não existe mais, mas houve um tempo em que boa parte das receitas dos escritórios de advocacia provinha da representação de outros escritórios, bem maiores, localizados nos grandes centros do país (Rio e São Paulo). Numa época em que nem se pensava em digitalização dos processos, o exercício da advocacia era quase artesanal: o sujeito fazia as petições por email, imprimia e ia protocolizar na vara onde o processo corria. Nesse meio tempo, conversava com o assessor, o diretor de secretaria e, às vezes, até com o responsável pela unidade jurisdicional. Nos “pequenos grandes” centros – como as capitais do Nordeste, por exemplo -, não era raro encontrar um advogado que conhecesse até a família da maioria dos juízes e desembargadores do estado.
Por isso mesmo, era muito comum um advogado em início de carreira abrir uma quitanda na sua freguesia, ir ao Rio ou a São Paulo para cursar alguma pós-graduação por lá e, com os contatos que fazia, regressava a sua terra natal para prestar serviços de representação advocatícia. Para as empresas que contratavam os escritórios dos grandes figurões do país para representá-las, o negócio também era vantajoso. Afinal, saía muito mais barato pagar um trocado mensal a um advogado no Nordeste do que pagar o deslocamento de um advogado paulista a alguma capital litorânea. Além dos próprios custos da viagem (passagem e hospedagem), essa galera costuma cobrar por hora trabalhada. E, como você pode imaginar, cada hora de uma figura dessas custa uma baba de dinheiro.
O esquema de representação era simples. Imagine, por exemplo, uma grande empresa de telefonia, cujo escritório principal funcionava no Rio de Janeiro. Acionada por um consumidor no Recife, o grande escritório contratava algum advogado pernambucano para representá-lo. A este advogado competia apenas receber as petições por email e, na medida do possível, ir “despachar” o processo com o juiz responsável pela causa. Qualquer novidade no caso, ele imediatamente reportava ao escritório representado.
Foi esse o caso de Florêncio. Advogado de muito talento, muito novo foi a São Paulo, cursar mestrado e doutoramento na USP. Durante os anos de pós-graduação, construiu uma invejável rede de relacionamentos com algumas das maiores figuras da advocacia no Brasil. Quando regressou ao Ceará, Florêncio – com os amigos que fez nos grandes escritórios paulistas – era praticamente o único advogado representante das grandes empresas nacionais no estado.
Para ajudá-lo a lidar com tanta demanda, Florêncio foi buscar nos bancos da UFC um estagiário para chamar de seu. Raul era um sujeito de trato fácil, mas temperamento um pouco arisco. Rápido no raciocínio, costumava ser cáustico nas respostas, especialmente se alguém vinha tirar onda com ele. Não tardaria para o caráter irritadiço da figura não tardaria a ser testado no novo estágio.
Certa feita, o escritório de Florêncio foi designado para representar os interesses de uma grande empresa de telefonia. A causa já estava em curso, mas o escritório paulista queria porque queria fazer com que o processo fosse encerrado logo. Não que o valor em jogo fosse muito grande, mas era o tipo do erro bizarro que, caso se tornasse conhecido, atrairia toda espécie de mídia negativa que você possa imaginar.
Para tentar encerrar logo o caso, o escritório mandou uma petição a ser protocolizada, na qual propunha a designação de uma audiência de conciliação entre as partes. A idéia era dar logo um “cala-boca” pro autor e, assim, evitar alguma “propaganda” vexatória para a empresa. Sem pestanejar, Florêncio assinou a peça e despachou Raul para o fórum, com a missão de protocolizar a petição. No dia seguinte, Florêncio iria lá para despachar o pedido com o juiz.
Ulysses era o advogado paulista responsável pelo caso e tinha pressa. Pegou o telefone e discou para o escritório de Florêncio. O dono do escritório estava em reunião, e coube a Raul atender o telefonema:
“Boa tarde, quem fala?”, perguntou Ulysses.
“Boa tarde. Aqui quem fala é Raul”, respondeu.
“Boa tarde, Raul. Eu gostaria de falar com o Dr. Florêncio, por favor?”
“O Dr. Florêncio está em reunião. O senhor gostaria de deixar recado?”
“Não, eu preciso muito falar com ele sobre um processo, da empresa tal”, insistiu Ulysses.
“Eu sei qual é esse processo, Dr…”, tentou explicar Raul. Mas, antes que ele terminasse, Ulysses perguntou:
“Você é o quê?”
“Eu sou estagiário do Dr. Florêncio”, respondeu modestamente Raul.
Como humildade é coisa desconhecida para advogado de grande escritório, paulista ainda por cima, Ulysses passou a tratar Raul com a ignorância que pressupunha que ele tinha:
“Olha, não sei se você está sabendo, mas eu enviei uma petição que era urgente para ele protocolizar pra mim. Aliás, você sabe o que é uma petição?”, indagou Ulysses, com a empáfia típica dos idiotas que se sentem superiores.
O sangue de Raul ferveu na hora, mas sua resposta irônica conseguiu chegar à boca antes do xingamento:
“Olha, petição eu não sei, mas o vocábulo petição vem do latim petitio, geralmente utilizado em sua forma complexa – petitionis. É comum ele ser usado no caso nominativo, embora não seja raro vê-lo também no acusativo”, ensinou Raul.
E foi assim que Ulysses passou a respeitar os estagiários dos escritórios do Nordeste…