Sacaneando em alemão

Sempre gostou de viagens, mas seu lance mesmo era conhecer a Europa. Terra de seus antepassados, o Velho Continente sempre inspirou em Raul um certo ar de mistério e curiosidade. Era como se do outro lado do Atlântico existisse um outro mundo, no qual até o Sol seria diferente. Claro que tudo isso era exagero de uma mente juvenil, mas, para quem viveu o Brasil dos anos 80 e 90, a metáfora não estava assim tão distante da realidade.

Raul tinha ainda outro “problema”, por assim dizer. Criado pela avó, uma argentina de pulso firme e educação erudita, coube ao moçoilo o privilégio de aprender com alguém que, de fato, estudara muito. Mais do que isso, a avó de Raul também viajara muito, trazendo na mala lembranças e cultura. Enquanto os pimpolhos da sua idade se divertiam tocando na vitrola os discos do Balão Mágico ou do Trem da Alegria, a avó de Raul fazia-o ouvir fitas cassetes da Filarmônica de Berlim. No aniversário, enquanto um avô “normal” daria um jogo de tabuleiro ou um Genius, o de Raul o presenteava com um álbum duplo de Von Karajan. E, ao contrário do que você possa imaginar, ele de fato adorava os presentes, principalmente pela “exclusividade”. Afinal, nenhuma outra criança que ele conhecia recebia tais “mimos”.

Talvez por isso mesmo, quando Raul juntou grana suficiente pra conhecer a Europa, um de seus roteiros obrigatórios era justamente ir às maiores casas de espetáculo do Velho Mundo. Ópera Garnier, Berliner Philharmonie e, por óbvio, o Scala de Milão.

Apelido oficial do Teatro alla Scala, o Scala de Milão é arquitetonicamente irrelevante. Seu interior é refinado e luxuoso, mas quem passa pelo edifício do lado de fora nem sequer suspeitaria que ali está uma das casas de espetáculo mais famosas do planeta. Mesmo assim, ninguém que aprecie música clássica e tenha a oportunidade de passar pela capital da moda deixaria, em sã consciência, de visitá-lo. Na primeira chance que teve, Raul obviamente comprou um ingresso para assistir a uma apresentação lá.

Vestido a caráter, Raul e sua namorada chegaram. Como na época o euro não estava tão caro, Raul deu-se o luxo de comprar ingressos no camarote. Não era, obviamente, um daqueles camarotes que ficam no andar de cima, nos quais antigamente ficavam os membros da realeza. Era, digamos, um “camarote de segunda classe”. Ainda assim, era bem melhor do que ficar no meio das cadeiras apertadas da platéia que fica defronte para o palco.

Como “camarote de segunda classe” não garante exclusividade, eram seis os assentos, dispostos em três filas com um par de cadeiras cada. Na fila da frente, um casal de alemães. Raul e sua namorada estavam logo atrás. Na última fileira do camarote, uma mãe solteira russa, junto com a sua filha.

Tendo chegado mais cedo, o casal de alemães parecia animado. Apontavam para o interior do teatro e para as pessoas que começavam a chegar ao Teatro sem grandes preocupações com as pessoas ao redor. Como italianos em regra não sabem muito de alemão, não havia grandes riscos de que ali houvesse alguém a entendê-los. E Raul e sua namorada, com sua fisionomia latino-americana, tampouco inspiravam temor.

O papo em alemão rolava solto e Raul não entendia patavinas do que estava a ser dito. A despeito de ter estudado alemão por um semestre com a avó, o que ele conhecia do idioma de Goethe não lhe permitia maiores incursões linguísticas. Entretanto, como os alemães tivessem “alugado” a parte da frente do camarote, Raul não conseguira se achegar nem sequer para tirar um fotinha do Scala por dentro.

O tempo foi passando e o espetáculo já estava prestes a iniciar. Já ligeiramente irritado, Raul teve uma idéia:

“Vou sacanear esses alemães”.

“Vê lá o que você vai fazer, Raul, pelo amor de Deus!”, suplicou uma nervosa namorada, conhecedora das presepadas do rapaz.

“Não se preocupe. Não vou fazer nada de errado”, respondeu Raul, com aquele sorriso de canto de boca que costuma denunciar as intenções escusas de alguém.

Sem se alterar, Raul foi caminhando vagarosamente em direção ao batente do camarote, onde estavam os dois alemães. Ao chegar lá, com a câmera na mão esquerda, usou a direita para gesticular um pedido por espaço, para logo depois dizer:

Entschuldigung” (“com licença”, em alemão).

Imediatamente, o casal arregalou os olhos. Raul não lia mentes, mas também não precisava. O olhar de espanto do casal entregou o que eles pensavam sem precisar dizer mais nada:

“Meu Deus, será que ele entendeu tudo o que a gente estava falando até agora?!?”

Dali até o final da apresentação, o casal de alemães permaneceu em obsequioso silêncio.

E foi assim que Raul descobriu que, para sacanear um estrangeiro, não é preciso necessariamente aprender a falar a língua dele…

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