Como ando meio reflexivo por esses dias, vamos recordar um post de quase dez anos atrás, ligado a um momento muito particular da vida deste que vos escreve.
É o que você vai entender, lendo.
Reflexões sobre a vida e a morte
Publicado originalmente em 21.10.15
Quem acompanha o Blog desde o começo sabe que o Autor não é muito afeito a falar de sua vida privada, muito menos daqueles que o rodeiam. Privacidade é a marca deste espaço. E, salvo algumas incursões furtivas em casos pitorescos da minha infância, pouco se sabe acerca de mim, a não ser quanto aquilo que escrevo, o que, de certa forma, fala mais sobre a minha pessoa do que um mero ato de apresentação formal.
Todavia, não é segredo pra ninguém que sofri dois baques muito recentes. Até porque foi por causa deles que passei quase um mês ausente aqui no Blog. Relacionados à perda de duas pessoas muito queridas, os baques acabaram por me lançar em um período de reflexão que eu não experimentava pelo menos desde minha conturbada adolescência. Reflexões que, no final das contas, foram adiadas pela feliz circunstância de eu ter demorado tempo até demais para confrontar-me com ela.
“A morte é a única certeza da vida”, repetem os que gostam de lugares-comuns para falar sobre a “indesejada das gentes”. “Mas vivemos como se nunca fôssemos morrer”, replicam os filósofos de botequim, valendo-se de outro lugar-comum bem caro aos que pensam ser possível resumir todas as implicações existenciais numa única sentença.
Lugar-comum por lugar-comum, o fato é que ninguém está preparado para a morte. Convivemos com ela todos os dias; ela nos chega diariamente por televisão ou por página de Internet. Mesmo assim, nossa reação diante dela é semelhante à de alguém que assiste a um filme ou a uma novela: não há comoção verdadeira. Afinal, a morte é sempre “do outro”, de um chinês vítima de terremoto ou de um menino sírio a atravessar o Mediterrâneo. Nada disso, portanto, é capaz de nos atingir.
A ficha só cai, portanto, quando a morte é de alguém próximo. Não só isso. Quando a morte é de alguém próximo e querido. A morte de uma pessoa próxima com a qual não há relação de afeto beira a desimportância. Por mais cruel que seja, não raro a partida nesses casos é recebida com alívio, não com dor. Por isso mesmo, as reflexões que a morte suscita só aparecem quando se perde alguém de quem genuinamente se gosta.
A primeira reflexão incensada pela morte diz respeito à dor do lamento. Com pessoas próximas, há uma variação inevitável entre os momentos de maior e menor querença. É dizer: ninguém gosta muito de alguém o tempo inteiro. Há momentos em que se gosta menos e até mesmo episódios de raiva e de ressentimento. O que fica, no entanto, é o conjunto da obra: durante a minha vida, eu gostei mais dessa pessoa do que desgostei? Tal será a medida da lamentação quando ela se for.
A segunda reflexão diz respeito à natureza das coisas. Construímos, em maior ou menor grau, um mundo material à nossa volta. Imóveis, carros, objetos pessoais, quinquilharias de todo o tipo; tudo isso constitui o acervo que, bem ou mal, reflete o que se passou na nossa vida. No entanto, todas essas coisas só têm sentido na medida em que há a sua conexão pessoal com elas. Quando você se vai, tudo aquilo perde a razão de ser. Qualquer pessoa pode ter uma ligação afetiva com uma maleta de negócios, por estar ligada a algum momento especial de sua vida ou por ter sido sua primeira conquista como homem de negócios. Se o sujeito morre, entretanto, a conexão sentimental desaparece. Para qualquer outra pessoa, aquela maleta não significará coisa alguma. Disso resulta o seguinte: quando a gente morre, tudo morre com a gente.
A terceira e definitiva reflexão relaciona-se às relações interpessoais. Nas salas de UTI, costuma-se dizer que os melhores acompanhantes são aqueles que sempre estiveram presentes na vida do paciente. Os piores, por sua vez, são aqueles que foram ausentes ou que têm alguma pendência com quem se vai. Por quê? Porque a morte lhes coloca diante da verdade cruel: o que havia de ser feito ou o que se queria fazer, já teria de ter sido feito àquela altura; não há tempo para mais nada. Se a pessoa morre, todos os bons e maus momentos, toda a convivência que houve ou que faltou, todas as questões mal resolvidas partirão junto com ela. Se isso serve de consolo para quem soube e pôde aproveitar, cai como uma bomba na cabeça de quem vai seguir vivendo sem ter tido a chance de viver os momentos que perdeu e resolver os problemas que ficaram no meio do caminho. E a única conclusão possível é esta: quando alguém morre, parte da gente morre também.
Boa reflexão a todos.