“Seja o que Deus quiser”, ou O livre arbítrio sob uma perspectiva religiosa

Reza o ditado que não se deve discutir política, futebol e crenças individuais. Como este que vos escreve sempre foi do contra e o Dando a cara a tapa nasceu com a pretensão confessa de ser um espaço para polêmicas, vamos retomar uma das seções mais esquecidas deste espaço: a sempre incompreendida Religião.

Para quem acredita em Deus – qualquer Deus cristão, que fique claro -, o mundo é governado por desígnios que só Ele alcança. Desde coisas muito importantes até as mais irrelevantes, tudo que acontece decorre da vontade da Providência Divina. Se Donald Trump conseguiu retornar à Casa Branca, foi porque “Deus quis”. Se Bolsonaro ainda não foi preso, é porque “Deus quis”. E se o sujeito tropeça na calçada e quebra o dedo mindinho, também foi porque “Deus quis”. Sob essa ótica quase literal dos mandamentos divinos, o mundo seria como um grande teatro de fantoches, com um velhinho de barba branca a puxar os cordões. Ou, para ser mais sintético, “seja o que Deus quiser”. Infelizmente, contudo, o buraco é mais embaixo.

Quem se dispuser a ler, por exemplo, a Suma Teológica de Santo Tomás de Aquino, verá que Deus não criou cada animal individualmente. É bizarro pensar que Deus acordou numa bela manhã e pensou: “vou criar um cachorro”. E aí, no dia seguinte, imaginou: “Bom, se eu criei o cachorro, agora vou criar um animal que lhe seja antípoda”. E então surgiu o gato. Isso simplesmente não faz sentido. Como Tomás de Aquino mui bem explica, Deus criou a Natureza e deixou que ela se encarregasse do resto.

Pois bem. E o bicho-homem no meio disso tudo?

À diferença dos demais animais espalhados pela natureza, Deus criou o homem à sua imagem e semelhança, justamente para que ele O adorasse. Mas se Deus criou o homem com o propósito de ser venerado, é mais do que razoável supor que o Todo-Poderoso criador do universo teria pensado em algum instrumento capaz de aferir o grau de fidelidade das suas criaturas para consigo. Daí temos, portanto, o livre-arbítrio, essa capacidade singular e única da qual a criatura humana dispõe para fazer suas escolhas aqui na Terra.

Imaginar, pois, que tudo – absolutamente tudo, em seus mínimos detalhes – acontece nas nossas vidas de acordo com uma vontade superior a governar o universo não faz o menor sentido do ponto de vista teológico. Se assim o fosse, por que Deus se ocuparia de criar um sistema de castigos e recompensas conforme a conduta de cada um? Caso o sujeito já estivesse predestinado a ir ao Céu ou ao Inferno de antemão, de que adiantaria dotar-lhe de vontade própria para praticar atos que não estivessem ao alcance Dele?

O homem é dotado de livre-arbítrio, em resumo, para que os ensinamentos e os preceitos religiosos, tanto quanto as proibições e os castigos divinos, não sejam em vão. Uma pedra cai da ribanceira porque o solo sob ela se erodiu, não porque ela quis. Da mesma forma, um urso come um salmão subindo rio acima para saciar o seu instinto natural, não porque ele escolheu almoçar peixe naquele dia. Só o homem é dotado de consciência e capacidade de julgamento que lhe permitem decidir qual caminho seguir.

Pare, portanto, de pensar que Deus está por trás de cada pequena coisa que acontece com você. Ele lhe conferiu a graça de ter discernimento justamente para você poder se governar. Ele só intervém – quando intervém – naquelas situações limítrofes, quando olha pra baixo e conclui que a desgraça que está por vir é tão grande que nós simplesmente não conseguiremos dar conta do recado. É justamente por isso, aliás, que milagres são tão raros. Do contrário, teríamos um milagre a cada meia hora em nossas vidas.

Em resumo, deixe Deus em paz e siga sua vida simplesmente confiando que Ele lhe deu capacidade suficiente para enfrentar os seus desafios. Se o seu chefe é um mala ou a sua vida amorosa vai mal, Deus não tem nada a ver com isso.

Acredite: Ele tem coisa muito mais importante com que se preocupar.

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