Higiene bucal – Parte II

Continuação do post da semana passada.

30 anos se passaram.

Há uma lenda segundo a qual o tempo cura todas as feridas. Pode até ser verdade, mas o fato é que ele não remove o rancor. Se amigos entram e saem na vida da gente como garçons em um restaurante, inimigos, ao contrário, acumulam-se. Era o que Átila Carreiro estava prestes a descobrir.

Tendo ajudado a defenestrar o pai do cargo de Diretor da Faculdade de Direito, Átila agora via ascender ao posto justamente o primogênito dele: Walter Bandeira Filho, seu colega de turma. Não que ele mesmo não tivesse conseguido subir na vida. A despeito da eterna fama de lambe-botas dos militares e X9 na ditadura, ainda assim Átila tornou-se um advogado eleitoral de sucesso e conseguira galgar postos relevantes na burocracia na estrutura universitária.

Nessa altura, Átila Carreiro ocupava o cargo de Pró-Reitor de Graduação da Universidade. “Hierarquicamente”, estava situado acima do seu arquirrival, Bandeira Filho. Todavia, pela história de vida que cada um dos dois construiu, era inegável que o respeito inspirado pelo Diretor da Faculdade de Direito superava em muitas vezes o do Pró-Reitor de Graduação. Até mesmo por conta disso, Átila evitava contatos com ele, mesmo os institucionais. Quando era realmente inevitável, Átila mandava o recado por terceiros ou, pior, recorria ao expediente safado de mandar um aspone no lugar para representá-lo.

Certa feita, contudo, não foi possível evitar o encontro. Tratava-se da cerimônia de comemoração dos 50 anos da Universidade. O Reitor, um sujeito boa praça que era amigo dos dois, não abriu mão da presença de ambos na cerimônia. O Pró-Reitor, por razões óbvias. O Diretor da Faculdade, porque o Direito – 50 anos mais velho que a própria Universidade – tinha sido o primeiro curso a integrar oficialmente a Universidade. Sabendo da inimizade entre os dois, o Reitor resolveu pagar missão a sua secretária.

“Não quero saber como você vai resolver isso. Só sei que eu quero os dois lá. E que eles se comportem! Não quero brigas no cinquentenário da Universidade!”, determinou o Reitor à pobre coitada.

Do ponto de vista prático, metade do problema já estava solucionado antes do encontro. Para que a cerimônia não se alongasse, os pró-reitores iriam apenas cumprir tabela. Só quem iria discursar eram o próprio Reitor e o Diretor da Faculdade de Direito, curso pioneiro da Universidade. Com Átila fora da jogada, restava tentar convencer Walter Bandeira Filho a não colocar água no chopp. A secretária, então, tocou o telefone da reitoria para a Faculdade de Direito.

“Dr. Walter, eu sei da sua briga com o Dr. Átila. Deus sabe que eu concordo com o senhor. Mas o Reitor pediu pelo amor de Deus que eu pedisse ao senhor que não fizesse uma cena lá no dia da cerimônia”, implorou a secretária.

“Não sou homem de fazer cena, Fulana”, respondeu secamente o Diretor da Faculdade.

“Eu sei, Dr. Walter, não foi isso que eu quis dizer, me desculpe”, replicou toda errada a secretária. “Era só pra pedir ao senhor que não baixasse o nível, não xingasse ninguém, essas coisas…”

“Tudo bem, Fulana. Não se preocupe. Não vou xingar ninguém por lá”, assentiu Walter Bandeira Filho.

A secretária não pôde ver, porque o meio utilizado não permitia, mas, do outro lado da linha, era possível enxergar um sorriso de canto de boca quando Bandeira Filho concordou em não descer o nível da cerimônia de aniversário da Universidade.

Chegando enfim à tão esperada data, a cerimonialista chamou para compor a mesa da cerimônia as maiores autoridades presentes. Nela, estavam o Ministro da Educação, o Governador do Estado, o prefeito da cidade, além, é claro, do Reitor e do Diretor da Faculdade de Direito. Na primeira fileira, defronte à mesa com as autoridades, todos os pró-reitores da Universidade.

Por regra de etiqueta e urbanidade, a praxe nesses eventos é que cada uma das pessoas convidadas a fazer uso da palavra dirija um ou dois cumprimentos às demais autoridades que se encontram sentadas. Nesse caso específico, isso implicava que, quando Walter Bandeira Filho tomasse o microfone para discursar, uma das pessoas a quem ele deveria cumprimentar era justamente Átila Carreiro, o Pró-Reitor de Graduação.

Com 30 anos de advocacia e salas de aula nas costas, Bandeira Filho dirigiu-se ao púlpito like a boss. Dono de uma voz grave e impostada, o Diretor da Faculdade de Direito reconhecidamente era um cara que sabia falar em público. Ao chegar ao microfone, deu boa noite a todos e iniciou os cumprimentos de praxe. Uma a uma, Walter Bandeira Filho foi cumprimentando as autoridades presentes.

“Saúdo o Ministro da Educação, Fulano de Tal, a quem agradeço a honrosa presença. Agradeço, também, a ilustre presença do Sr. Governador de Estado, Cicrano, e do Sr. Prefeito, Beltrano. E cumprimento, por fim, meu amigo e companheiro de Universidade, o Sr. Reitor”.

Ninguém ali pôde perceber, mas, quando ele começou a puxar a fila de pró-reitores, a secretária do Reitor gelou na cadeira. O que será que ele iria fazer? Será que ele honraria a palavra e não xingaria ninguém? Ou aproveitaria a oportunidade para, trinta anos depois, vingar a honra do seu pai?

“Cumprimento o Pró-Reitor de Pesquisa, Professor A. Cumprimento, também, o Pró-Reitor de Administração, Professor B. Cumprimento, ainda, o Pró-Reitor de Extensão, Professor C”.

Ao chegar no seu arqui-inimigo, Bandeira Filho falou:

“Cumprimento, também, o Pró-Reitor de Graduação…”

Por um instante, a secretária respirou aliviada. Sim, Bandeira Filho cumpriria a palavra. Ele não iria xingar ninguém. Mas foi quando ele seguiu com a frase:

“…aquele sujeitinho que está sentado ali” – disse, enquanto apontava o dedo para Átila Carreiro – “cujo nome eu não vou declinar por uma questão de assepsia verbal”.

E foi assim que a secretária do Reitor descobriu que, para xingar alguém, não é preciso sujar a boca.

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