O Movimento Antropofágico e a deglutição do Bispo Sardinha

Uma das vantagens de você ter um Blog só seu é não dever satisfações a ninguém, especialmente quando se trata de pauta. É isso que permite, por exemplo, que o Dando a cara a tapa tenha mais de vinte seções, a maioria sem qualquer conexão entre si. Mas, por outro lado, quando é possível reunir em um só post dois temas tão díspares quanto Artes e História, não há como negar o regozijo interno do Autor. Para que esse raro acontecimento se materialize, vamos recorrer a um dos episódios mais curiosos da historiografia nacional: a morte do Bispo Sardinha.

Tomado de posse em 1500, o Brasil passou mais ou menos 30 anos como uma possessão ultramarina sem serventia alguma para sua metrópole, Portugal. Seja por falta de homens e dinheiro, seja por falta de vontade mesmo, o fato é que os portugueses não pareciam muito interessados em dar as caras por aqui. Quando a colonização espanhola começou a tomar rumo, os portugueses pressentiram que um eventual sucesso hispânico poderia colocar em perigo as terras conquistadas com o Tratado de Tordesilhas. Na dúvida, melhor começar a colonizar a porção de terra “descoberta” antes que os espanhóis resolvessem tomar para si a porção portuguesa das Américas.

Uma vez que Portugal era um reino católico, nada mais natural do que tentar fazer com que também as suas colônias se convertessem ao catolicismo. Para esse efeito, o rei de Portugal, D. João III, nomeou para ser o primeiro bispo do Brasil o clérigo Pedro Fernandes Sardinha. Ou, como ficaria conhecido para a posteridade, simplesmente “Bispo Sardinha”.

Sardinha desembarcou em Salvador em 25 de fevereiro de 1551. Ao chegar aqui, o Bispo fez um grande descoberta: pretendendo-se fiéis católicos, os portugueses que aqui desembarcavam viviam na mais profana esbórnia. Não importavam sequer se eram casados na Pátria Mãe. O sexo corria livre e desimpedido. As indígenas eram suas vítimas preferenciais, embora não fossem as únicas.

Sardinha, como bom padre que era, ficou escandalizado. Um dos mais sacrílegos era justamente o filho do governador-geral do Brasil, Tomé de Sousa. No embate entre quem podia mais (o representante da Igreja ou o mandatário do poder secular), levou a melhor o “filho do dono”. Sardinha, então, foi despachado de volta para Portugal.

Mas havia uma tempestade no meio do caminho. Mal saindo da Bahia e passando pelas Alagoas, o navio começou a inundar. Como a nau adernasse em mar aberto, todo mundo pulou do barco pra tentar se salvar. De toda a tripulação, cerca de 90 pessoas conseguiram ainda alcançar a terra firme. Dentre eles, o Bispo Sardinha.

Os tripulantes, contudo, saíram da frigideira diretamente para o fogo. Salvos do mar, os sobreviventes não se salvaram dos Caetés. Em um misto de ritual religioso e vingança contra os colonizadores portugueses, os índios cozinharam os náufragos e os comeram em homenagens aos seus deuses.

O episódio ficou marcado de maneira tão profunda no imaginário popular que, quando Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral resolveram lançar seu Manifesto Antropófago – a iniciativa cultural mais original da história do Brasil -, o genial poeta paulista fez questão de registrar, ironicamente, que o ano em que ele se publicava (1928) representava o “374º ano da Deglutição do Bispo Sardinha”.

Marco inicial do movimento antropofágico, o Manifesto era uma ode à criação de uma cultura genuinamente nacional. “Comendo” as influências estrangeiras, a idéia era de que o país desse uma espécie de “grito de Independência” no setor cultural, abandonando as tentações de somente imitar as tendências que vinham de fora.

Sucesso na época, o Manifesto e o seu Movimento influenciaram toda uma geração de artistas e pensadores brasileiros. Sua importância, contudo, foi perdendo relevo com o passar do tempo e hoje, infelizmente, é difícil encontrar sequer quem lembre ou já tenha ouvido falar de um ou de outro. Com isso, perdeu-se também a história do canibalismo do Bispo Sardinha e o que ele representou para a história do país. Talvez o Brasil melhorasse um pouco se a contagem temporal sugerida por Oswald de Andrade fosse retomada.

Quem sabe não podemos começar justamente por este post?

Publicado no dia 17 de outubro de 2024

135º ano da República

202º ano da Independência

468º ano da Deglutição do Bispo Sardinha

PS.: Para quem quiser conhecer mais a fundo a história do Bispo Sardinha e muitos outros “causos” da história do Brasil, a leitura obrigatória é Assim se pariu o Brasil. Escrito por Pedro Almeida Vieira, o livro se desenrola numa prosa a um só tempo leve e elegante, podendo ser lido aos poucos, sem que se perca o fio da meada ao retornar ao escrito.

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