As tietes do Papa

Argentinas de nascimento, espanholas por descendência sanguínea, Florencia e Victoria desde cedo aprenderam a dureza da vida. Ainda adolescentes, o pai partiu e deixou-as com a mãe dona de casa, cujo ofício não era outro senão o de cuidar das prendas do lar. Trata-se de uma época em que o único conforto possível estava em Deus, católicas fervorosas que eram. A reza ao final do dia era um dos poucos programas de paz que aquela casa destroçada pela perda súbita do provedor da família podia proporcionar. A Argentina dos anos 50, de fato, não era exatamente um lugar alegre para se viver.

Sentindo o bafo da ditadura peronista no cangote, ambas não titubearam: colocaram as malas e a mãe em um navio e partiram para a Espanha. Lá, cursaram jornalismo e chegaram até mesmo a entrevistar Salvador Dalí numa atividade de campo da faculdade. Sempre foram muito próximas, mas a vida acabou por separar-lhes o caminho. Florencia, a mais velha, encontrou um diplomata chileno que trabalhava na ONU e despachou-se para Nova Iorque. Victoria, um ano mais moça, acabou por encontrar um médico baiano filho de alemães. Depois de um estágio do marido em Copenhague, Victoria veio grávida de 8 meses para o Brasil, parindo na Maraponga, hoje um bairro, à época distrito de Fortaleza.

Forjadas na dificuldade, Florencia e Victoria sempre prezaram o cuidado com as contas das famílias. Numa época em que não havia Skype ou WhatsApp, elas se comunicavam usando o método do século XVIII: cartas. As missivas serviam a um só tempo como hobby e correspondência noticiosa, de modo que ambas pudessem manter o contato perdido com a distância. Dadas as tarifas proibitivas de então, ligações internacionais estavam completamente fora de cogitação. Apenas em último caso qualquer uma das duas recorria à invenção de Graham Bell para falar com a outra.

Por um desses acasos do destino, Florencia e Victoria, já em seu sétimo ou oitavo conclave, puderam presenciar a ascensão do primeiro papa argentino em 2000 anos de Igreja Católica. Raul, neto mais velho de Victoria, correu para a casa dela assim que ouviu o Habemus Papam! Conhecedor das raízes católicas e portenhas da avó, não era preciso ser nenhum gênio para saber que a octogenária velhinha fliparia quando recebesse a notícia.

Ao chegar na casa da avó, Raul pensava que estaria a dar a notícia em primeira mão. Qual o quê? Não só sua avó já soubera da notícia, como ainda já tinha pesquisado todo o histórico do prelado argentino Jorge Bergoglio.

“Es un muy buen hombre”, concluiu satisfeita a avó. “Será un buen papa”.

Ao que o neto concordou:

“Por supuesto, vovó”.

Eram por volta das 19h da noite. De repente, toca o telefone. A avó se levanta para atender no corredor. O neto consegue escutar a conversa de orelhada.

“Era Florencia”, disse a avó quando voltou à sala.

“En serio?”, respondeu espantado o neto. Às 18h de Nova Iorque, 19h do Brasil, aquele horário de pico era de preço mais alto para as extorsivas tarifas internacionais cobradas pelas companhias telefônicas. O fato de essa circustância ter sido solenemente ignorada dá a exata dimensão do que a eleição de Francisco representava para as duas.

Meia hora depois, Raul saiu da casa da avó. No caminho para sua casa, resolveu ligar para sua namorada, Ana Roberta, e relatar-lhe o ocorrido. Sabedora dos hábitos espartanos de ambas as velhinhas, a namorada do neto também não escondeu o espanto:

“Quer dizer então que ela ligou pra ela lá de Nova Iorque?!? Só pra falar da eleição do Papa?!?”

Ao que Raul respondeu:

“Pois é. As mina pira”.

E foi assim que Ana Roberta descobriu que existe tietagem em qualquer idade…

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