Em um tempo de tanta loucura coletiva, talvez seja uma boa ocasião para ressuscitar uma das seções mais queridas deste espaço: as Artes. Nesse caso, retomaremos uma das melhores obras da literatura nacional: O Alienista.

Que Machado era dado a ironias, isso todos nós sabemos desde sempre. A ironia podia ter a pena da galhofa ou a tinta da melancolia, como nas memórias narradas pelo defunto-autor Brás Cubas, mas sempre havia uma pontinha de humor perdido entre as linhas escritas pelo Bruxo do Cosme Velho. No caso de O Alienista, contudo, a verve cômica de Machado desenrola-se sem pudor, atingindo quase o nível do escracho, tal o surrealismo das situações narradas no conto.
Para começar, convém esclarecer do que trata o escrito. Antes que alguém venha a traçar paralelo com alguma obra de ficção científica do gênero suspense, “alienista” aqui não envolve qualquer semelhança com algo vindo do estrangeiro ou mesmo do espaço sideral. Alienistas eram os sujeitos dedicados a estudar os problemas mentais da população. Até o começo do século XX, o termo “psiquiatra” ou “psicólogo” ainda não tinha ingressado no vernáculo. Afinal, o “pai da psiqué”, Sigmund Freud, também era ele próprio um “alienista”
No caso da obra de Machado, o alienista atende pelo curioso nome de Simão Bacamarte. Sim, parece até nome de Lima Barreto, mas a semelhança acaba por aí. Médico viajado pelo mundo, Simão Bacamarte resolve se instalar na pequena e pacata cidade de Itaguaí, no Rio de Janeiro. Lá, contrai núpcias com uma viúva, Dona Evarista. Para ganhar a vida, instala na localidade um pequeno estabelecimento dedicado a tratar das loucuras dos outros. Bacamarte dá-lhe o nome de “Casa Verde”.
Como era de se esperar, loucos de toda a região começam a peregrinação até a Casa Verde. Não tarda muito até que o estabelecimento esteja cheio. Obcecado com o próprio trabalho, Simão chama seu amigo Crispim Soares, o boticário (farmacêutico) da cidade, para enunciar uma nova “teoria”: “A loucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente”.
A partir daí, Bacamarte desata a encontrar loucura até em pequenos gestos. Um sujeito que perdera toda a herança emprestando para os outros, mas sem conseguir cobrar o dinheiro de volta, foi considerado louco. Quando bateu o ciúme do alienista em relação a Martim Brito, um cidadão que ele supôs ter se engraçado para sua esposa, lá foi o alienista internar o pobre coitado na Casa Verde. O surto de combate à loucura foi tamanho que não poupou nem mesmo Dona Evarista, também ela trancafiada como louca dentro do estabelecimento dirigido pelo marido.
É nesse contexto que Porfírio, o barbeiro da cidade e pretendente a político, resolve aproveitar o clima de tensão para “causar” (e, assim, catapultar uma eventual candidatura). Ele arma uma revolta popular contra Bacamarte. Como uma onda, a população quebra na porta da Casa Verde. No entanto, firme como uma rocha, o alienista calmamente explica a loucura de seus pacientes, o que faz com que a revolta arrefeça.
Mas, quando Simão Bacamarte pensa ter controlado a situação, dá as costas para a população e renova a fúria popular. Quando as forças de segurança da cidade chegam à Casa Verde, ao invés de combater o levante, junta-se aos revoltos. Tem início, então, uma verdadeira revolução na cidade.
Liderados por Porfírio, os revoltosos dirigem-se à Câmara de Vereadores da cidade e tomam de assalto (literalmente) o poder. Porfírio assume como uma espécie de ditador de Itaguaí. Contudo, em um plot twist de dar inveja a M. Night Shyamalan, ao invés de dar cabo de Bacamarte, Porfírio se une a ele e dá seguimento ao processo de internação geral da cidade.
“Daí em diante”, conta Machado, “foi uma coleta desenfreada”. Qualquer um que desse “nascença ou curso à mais simples mentira do mundo” era logo trancafiado na Casa Verde. “Tudo era loucura”, em resumo. Ao final desse surto esquizofrênico, nada menos que oitenta por cento da população de Itaguaí (“quatro quintos”, para ser mais exato) estava condenada ao confinamento na Casa Verde.
Súbito, um espanto geral. Do nada, ouve-se o burburinho na cidade de que todos os loucos presos no manicômio do alienista serão soltos.
“Todos?”, perguntou um morador.
“Todos”, respondeu outro.
Em um ofício enviado à Câmara, Bacamarte informava que, ao “examinar os fundamentos de sua teoria das moléstias cerebrais”, chegara à conclusão que não havia possibilidade de encontrar um equilíbrio que fosse “perfeito e absoluto”. Logo, a única conclusão possível era de que “se devia admitir como normal e exemplar o desequilíbrio das faculdades”, somente merecendo a internação os indivíduos “em que aquele equilíbrio fosse ininterrupto”.
Entre idas e vindas, Simão Bacamarte fizera uma assombrosa descoberta: se todo o resto da humanidade era louco, anormal era ele, que não era doido. A fim de tirar a prova dos 9, convocou um conselho de amigos para questioná-los sobre suas qualidades e sua sanidade. A idéia era de que, encontrado algum resquício de maluquice, o alienista pudesse juntar-se à malta na insanidade.
Qual o quê?
“Nenhum defeito?”, indagou Bacamarte.
“Nenhum”, respondeu em coro a assembléia.
Como o alienista questionasse o julgamento alheio, alegando que ele próprio não conseguia enxergar em si mesmo tanta virtude, o Padre Lopes interveio:
“Sabe a razão por que não vê as suas elevadas qualidades, que aliás todos nós admiramos?
É porque tem ainda uma qualidade que realça as outras:— a modéstia.”
Resignado, Simão Bacamarte enfim trancafiou-se no manicômio da Casa Verde. Afinal, se todos os outros eram loucos e só ele o normal, o doido era ele. Dezessete meses depois, morria o alienista da Itaguaí.
O conto desenvolve-se de forma leve e fluida, sem muita margem para bocejos. Com uma profundidade de cerca de quarenta páginas (a depender da edição), é leitura para ser encerrada numa tarde preguiçosa ou numa espera cansativa de consultório. Além do deleite de ler o texto de Machado, o leitor mais atento sairá dele mais divertido e com uma dúvida existencial:
Afinal, o que é ser normal?