Recordar é viver: “O sequestro do orçamento, ou A necessária discussão sobre as emendas parlamentares”

Seis meses depois, estamos tendo a discussão que deveria ter começado no início do ano passado, quando este governo que aí está começou.

É o que você vai entender, lendo.

O sequestro do orçamento, ou A necessária discussão sobre as emendas parlamentares

Publicado originalmente em 7.2.24

Era a crônica do desastre anunciado.

Desde que Dilma Rousseff resolveu enfrentar Eduardo Cunha, passando pela desgraça em que Temer caiu após a delação de Joesley Batista, até chegar na “terceirização” do governo promovida por Jair Bolsonaro, temos assistido cada vez mais ao sequestro do orçamento da República pelos deputados e senadores eleitos para o Parlamento. Contrariando as regras mais básicas do sistema presidencialista, os parlamentares resolveram se assenhorar de uma parcela cada vez maior dos dinheiros arrecadados da população, relegando o Governo Federal praticamente à condição de pedinte para seus próprios programas. Trata-se de uma deformação completa do nosso sistema de tripartição de poderes.

Não que isso não fosse exatamente inesperado. Muito pelo contrário. Quem lê com atenção a Constituição de 1988 enxerga em seu texto coisas assaz curiosas. Embora o sistema de governo esteja definido com um representante eleito por voto majoritário para exercer a chefia de Estado e de Governo (o Presidente da República), quase nada se faz sem que o Congresso dê o seu pitaco no angu. Não só isso. Em muitos casos, o Congresso pode literalmente decidir sozinho.

Ainda que reste ao Presidente o direito de vetar certas proposições, o Congresso pode simplesmente derrubar o veto e fazer valer sua vontade na marra. No caso de emendas à Constituição, nem direito a veto existe. Os parlamentares aprovam a alteração no texto constitucional, promulgam a emenda e fim de papo. Quando muito, restará ao Governo tentar recorrer ao Supremo caso haja alguma inconstitucionalidade na iniciativa. Por mais que não se queira admitir, a prevalência política – no sentido de “poder para fazer as coisas” – no nosso sistema constitucional está estruturada em torno do Congresso, à semelhança do que ocorre no parlamentarismo.

Por muitos anos, o modo que os presidentes de turno encontraram para contornar essa arquitetura estranha foi justamente o uso das emendas parlamentares. Indicadas pelos parlamentares como prerrogativa sua, as emendas destinavam dinheiro a pequenas obras ou instituições nos seus redutos eleitorais. A intenção, por óbvio, era transformar dinheiro em votos. Até aí, nada de mais: politics is politics.

Pela dinâmica então estabelecida, os deputados e senadores enfiavam as emendas no orçamento. No ano seguinte, o Executivo – senhor dos recursos federais – decidia quais e quando as emendas seriam pagas. Foi através desse sistema que os sucessivos presidentes, de Itamar Franco a Dilma Rousseff, conseguiriam formar suas bases de apoio, naquilo que o sociólogo Sérgio Abranches viria a definir como “presidencialismo de coalizão”.

O problema, como você pode imaginar, é que esse “arranjo” somente funcionaria enquanto o Presidente da República se mantivesse politicamente forte. Na hora em que ele ficasse fraco, ou uma figura politicamente fraca ocupasse como inquilino o Planalto, era apenas questão de tempo para que o Congresso “descobrisse” que era ele que mandava no pedaço. Bastaria aumentar a quantidade de emendas no orçamento ou, pior, torná-las de execução obrigatória, para que o Executivo perdesse seu principal instrumento de barganha política.

E foi justamente isso que aconteceu a partir de 2015. Primeiro com Dilma Rousseff, depois com Temer, até chegar às raias do paroxismo com Bolsonaro, o “monstro” do Congresso devorador de emendas foi-se tornando cada vez maior e insaciável. A coisa atingiu tal nível de selvageria que o fato de o Presidente Lula ter vetado R$ 5,3 bilhões – de um total de mais de R$ 50 bi – nas emendas deste ano foi o suficiente para deflagrar a mais nova crise institucional em Brasília. Quem duvida pode conferir o discurso de Arthur Lira na abertura do ano legislativo, pronunciado na última segunda-feira.

É bem verdade que Lula já pegou o bonde andando, com a casa toda desarranjada pelo que (não) fizeram seus predecessores. Mesmo assim, o atual mandatário tem feito pouco ou quase nada para mudar esse estado de coisas. Parte dessa inação deriva do fato de que boa parte do PT abraçou-se gostosamente ao Centrão, funcionando como linha auxiliar do “Lirismo”. Não por acaso, o Presidente da Câmara mantém alguns dos principais próceres do partido da estrela vermelha como seus fiéis escudeiros.

Quem sabe movido pela esperança de que o tempo acabe por resolver essa questão de uma forma ou de outra, Lula talvez ache que pode ir empurrando a coisa com a barriga até a eleição da nova mesa diretora da Câmara no ano que vem, quando Lira forçosamente deixará o terceiro posto mais importante da República. A questão, portanto, é saber se a barriga do Planalto está suficientemente sarada para empurrar o Presidente da Câmara e o Centrão até 2025. A julgar pelo que se viu até agora, a resposta é não.

Mais hora, menos hora, Lula vai ter que encampar a discussão sobre a função e os limites das emendas parlamentares. A melhor forma de fazer isso é abrir o jogo e trazer a luz do Sol para dentro dessa discussão. Uma discussão honesta, mostrando para onde está sendo direcionada a verba das emendas e o que se está deixando de fazer para manter esse mimo do Parlamento, certamente faria acordar o “monstro da opinião pública”. Sem ter como defender o indefensável, nem Arthur Lira teria forças para barrar a pressão que viria de fora pra dentro do Congresso.

Se até o momento não se fez a luz sobre sobre essa discussão, parte disso deriva do fato de que Lula não quer confrontar a Câmara (e, dentro dela, o PT) com seus próprios demônios. É um erro, porém, apostar na inércia, achando que é melhor deixar tudo como está, para ver como é que fica. Em 2014, Dilma Rousseff foi avisada de que havia algo de errado na Petrobras. A “gerentona”, contudo, achava que Paulo Roberto Costa era apenas mais um diretor da estatal e que Sérgio Moro era apenas um juiz de Curitiba.

Deu no que deu.

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