As boas coisas também acontecem.
Depois de uma semana de estupor e indignação com o retorno da famigerada “pauta de costumes” à agenda da Câmara dos Deputados, todo os (ir)responsáveis pela aviltante medida de criminalizar o abortamento de meninas e mulheres estupradas parece ter descido à gaveta. Tal como previsto aqui, o motivo do recuo geral de Lira e da bancada evangélica não foi a mobilização do governo, mas a pressão vinda das ruas.
Se há males que vêm para o bem, a palhaçada criminosa do PL 1904 serviu pelo menos para desmitificar algumas lendas que corriam por Brasília (e que vinham sendo repetidas acriticamente pela preguiçosa imprensa brasileira, acostumada desde sempre a apenas repetir o que as suas “fontes” querem ver publicado).
A primeira delas é a de que Lira e o Centrão atuam como um bloco coeso e imune à pressão da opinião pública. Uma vez exposto o pastiche da votação da urgência do PL 1904, segundo o qual Lira ajudaria a bancada evangélica a aprovar essa vergonhosa proposta legislativa em troca de votos para a sua sucessão na Presidência da Câmara, a grita foi tamanha que todo mundo teve de colocar o rabo entre as pernas.
Como filho feio não tem pai, Lira veio logo a público dizer que “nenhuma matéria dessa natureza seria aprovada sem o necessário debate” e que “nenhum direito adquirido das mulheres seria derrubado”. O todo-poderoso Presidente da Câmara ofendeu a inteligência alheia na primeira afirmação e mentiu deliberadamente na segunda. Se a matéria era de tal ordem que precisava de debate aprofundado, por que votar a urgência da sua aprovação em 24 segundos? E como afirmar que os direitos das mulheres não estavam risco, se nem sequer lhes seria assegurado o sacrossanto direito de não levar a termo uma gestação fruto de um estupro?
A segunda lenda desfeita nesta conturbada semana foi a de que “o povo brasileiro é conservador e, portanto, contrário ao aborto”. Nos dois casos, é bem possível que isso seja verdade, mas nem conservador é sinônimo de sacripanta, nem tampouco ser contrário ao aborto significa querer impor a mulheres violentadas dar à luz uma criança resultado desse crime. Nem mesmo os evangélicos ou os católicos mais fervorosos, mas que carregam pelo menos um tiquinho do amor de Cristo no coração, poderiam compactuar com semelhante proposta.
A terceira lenda a ser jogada fora diz respeito à necessidade de correr para o governo sempre que a coisa apertar. Assim como em outros casos, também neste o governo foi levado a reboque. Não nos esqueçamos que, na votação da urgência constitucional do PL 1904, o líder do governo na Câmara, José Guimarães, liberou a bancada. Confrontado com a posição após a rebordosa, Guimarães preferiu escorregar pela tangente: “Isso não é assunto de governo”. Somente depois dos protestos de rua e até do Luciano Huck, foi que Lula e seu staff resolveram vir a público dizer que eram contra o projeto.
Vencida a batalha, a pior coisa que poderia acontecer agora é pensar que a guerra está vencida. Pelo contrário. Lira e a bancada evangélica resolveram jogar para as calendas a votação do PL 1904, supostamente para permitir um maior “debate” sobre a matéria. Embromação reles. O que eles querem é deixar a poeira baixar e empurrar a pauta com a barriga. Aproveitando-se que a urgência já passou, a matéria poderia ser subitamente retomada (e aprovada) numa semana qualquer de noticiário morno, quando a sociedade estiver desmobilizada e olhando para o outro lado.
Exatamente por causa disso, ao invés de ficarem defendendo o “engavetamento” ou o adiamento da votação, aqueles que são contrários a essa atrocidade deveriam estar pressionando para que a votação ocorresse agora, pra já, no calor do momento. Se há uma coisa que a história legislativa ensina é que nem sempre é bom deixar as coisas se acalmarem. Melhor votar no fragor da hora, enquanto a pressão da opinião pública sobre os parlamentares está quente e palpável.
Para os céticos que acham que isso é bobagem, convém ler o noticiário de hoje. Lira e o Centrão pretendiam votar outra excrescência legislativa, a PEC da Anistia Eleitoral, segundo a qual seriam anuladas todas as multas contra partidos políticos que desobedeceram as regras de quotas para candidaturas de negros e de mulheres.
Qual foi o resultado?
O projeto foi à gaveta.