A equiparação do aborto ao homicídio, ou A tal da “pauta de costumes” x A sociedade

Há males que vêm para o pior. Mas, mesmo se tratando de uma seara fértil maldades das mais bizarras, o que está agora em curso no Congresso Nacional avilta até mesmo os já rebaixados padrões brasileiros de tolerância e dignidade. Tal é a conclusão de quem observa o que a Câmara está prestes a votar acerca do aborto legal.

Como se sabe, o aborto no nosso ordenamento é crime (Código Penal, art. 124). Uma vez que, em regra, se trata de crime doloso contra a vida, a instância para julgamento desse delito é o tribunal do júri (art. 5º, inc. XXXVIII, da Constituição Federal). Em que pese algumas tentativas frustradas do próprio Supremo Tribunal Federal, no sentido de autorizar o aborto discricionário no Brasil, essa é a regra que prevalece em nosso sistema jurídico.

Ocorre, no entanto, que nem sempre o abortamento é punível. A lei põe a salvo das cominações penais duas situações: I – quando há risco à vida da gestante; e II – quando a gravidez é decorrente de estupro. Para além desses dois casos, há também a hipótese do abortamento do feto anencefálico, estabelecida (de forma anômala) por decisão do STF (ADPF nº. 54). Isso é o que está estabelecido na nossa lei penal desde 1940, ou seja, quando o país era muito mais rural, atrasado e conservador do que é hoje.

Agora, para fazer gracinha e excitar a malta de fanáticos religiosos, deputados da extrema-direita brasileira querem derrubar o que já está estabelecido há quase um século para retomar padrões quase medievais de legislação. Utilizando-se da já surrada tática de promover a “pauta de costumes” para “desgastar o governo”, essa horda de cretinos idólatras agora quer equiparar as penas do aborto às do homicídio, caso o abortamento ocorra após a 22ª semana de gestação.

Até aí, vá lá. É apenas mais um entre tantos casos de mau sopesamento, pelo legislador, de condutas humanas na hora de definir tipos penais. Não faz qualquer sentido, afinal, dizer que uma mulher que abortou seu filho tenha que cumprir a mesma quantidade de pena que, por exemplo, um homicida que matou um velhinho apenas porque ele encostou a mão no capô do seu carro (caso real).

Mas a coisa é muito pior que isso. Para além de equiparar o abortamento ao homicídio, a nova lei proíbe – isso mesmo que você leu: PROÍBE – qualquer tipo de aborto, mesmo aqueles amparados em risco para a vida da gestante ou decorrentes de estupro, após a 22ª semana de gestação. Trata-se do mais rasteiro e atroz atentado que se produziu contra os direitos da mulheres em toda a história da República.

Não sendo néscio ou fanático, qualquer pessoa minimamente razoável consegue entender o argumento por trás das hipóteses legais que estabelecem a exclusão da punibilidade em caso de aborto. Quer dizer: quem, em sã consciência, negaria a uma mulher o direito de abortar o feto caso sua própria vida estivesse em risco, ou, ainda, quando a gravidez tenha sido gerada por estupro? Mesmo católicos e evangélicos fervorosos, mas não fanáticos, conseguem enxergar que não há qualquer ofensa aos céus quando se sacrifica uma vida em gestação em casos assim.

Todavia, como tem sido hábito nos últimos tempos, o governo federal – tomado por um irritante sentimento fatalista diante da realidade adversa – meio que lavou as mãos e deixou ao cargo do Centrão de Lira tocar a pauta adiante. Além de tentar empurrar a questão com a barriga, procurando adiar a votação, os articuladores do governo pouco têm feito para contestar o mérito do projeto. Tomado pelo desejo de fazer seu sucessor na Presidência da Câmara, Arthur Lira parece ceder a todos os caprichos da “bancada do TikTok” na Casa, de maneira a conseguir votos para seu indicado.

A menos que a consciência moral dos brasileiros tenha descido a níveis tribais, ninguém pode admitir que se envie ao cárcere, por exemplo, uma menina de 12 anos, estuprada desde os 10 pelo próprio pai, somente porque o restante da família descobriu a gravidez depois da 22ª semana de gestação. E o que é pior: com uma pena mais de três vezes superior (vinte anos) à do criminoso responsável pela gravidez indesejada (seis anos).

É preciso dar um basta nesse tipo de estultice. O que está em causa não é uma discussão entre governo e oposição. É entre Congresso e Sociedade. Uma vez que não temos como contar com o governo, inoperante e impotente em temas dessa natureza, o que temos que fazer é ir às ruas e defender a nossa própria dignidade. Ou o Brasil toma as rédeas e começa a impor limites mínimos de civilidade à sanha fundamentalista da bancada medieval, ou daqui a pouco nos encontraremos discutindo o regresso do feudalismo como sistema de produção.

É esperar pra ver.

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