To be or not to be? ou A verdade por trás do “ser ou não ser”

“Ser ou não ser? Eis a questão?”

Mesmo quem nunca leu ou sequer ouviu falar de Shakespeare já ouviu falar dessa frase. Encerrando um dos pensamentos filosóficos mais profundos de todos os tempos, o solilóquio de Hamlet acerca da própria existência tornou-se figurinha carimbada mesmo em rodas de bar, quando o nível de teor alcoólico no sangue começa a despertar, mesmo nas mentes mais limitadas, os mais paradoxais pensamentos sobre a vida.

O monólogo de Hamlet se desenrola na primeira cena do Ato III da peça homônima. Angustiado pela promessa feita ao fantasma de seu pai, de vingar-lhe a morte causada por seu irmão (e agora Rei) Claudius, o príncipe da Dinamarca fica literalmente sem saber o que fazer da vida. Súbito, perpassa por sua mente um pensamento tão ligeiro quanto perigosamente sedutor: e se ele, Hamlet, desse cabo à própria vida?

E aqui revela-se um dos maiores casos de interpretações equivocadas na literatura universal. Como a maioria que já ouviu a frase nunca leu a obra do dramaturgo inglês, ninguém nem sequer imagina que o famoso “ser ou não ser” é, na verdade, um diálogo consigo mesmo acerca da idéia de suicídio. No fundo, quando Hamlet fala em “ser ou não ser”, o que ele está tentando dizer de fato é “viver ou não viver”. A partir dessa compreensão, todo o resto do solilóquio passa a fazer mais sentido.

Tudo bem, tudo bem. Uma vez que a peça está escrita em inglês poético (e também arcaico), é natural que muito do que é dito no texto não seja imediatamente absorvido por quem assiste à apresentação ou lê ou livro. Para facilitar o entendimento a quem se aventurar a revisitar essa obra imortal, vamos fazer uma pequena análise aqui, “traduzindo” (numa “dupla” tradução livre), o texto de maneira a que qualquer pessoa possa entender do que Shakespeare realmente falava.

To be, or not to be, that is the question:
Whether ‘tis nobler in the mind to suffer
The slings and arrows of outrageous fortune,
Or to take arms against a sea of troubles,
And by opposing end them?

Na primeira parte do monólogo, Hamlet coloca a questão de frente: “ser ou não ser”, ou seja, “viver ou abandonar a vida”, essa é a questão. Para começar a argumentação, ele se pergunta: “será mais nobre sofrer as pedras e as flechadas de uma sorte ultrajante? Ou pegar em armas contra um mar de problemas e, opondo-se a eles, dar-lhes fim?” Traduzindo: é melhor aguentar a pancadaria calado, ou partir pra violência?

To die, to sleep,
No more; and by a sleep to say we end
The heart-ache, and the thousand natural shocks
That flesh is heir to: ‘tis a consummation
Devoutly to be wished. 

Na segunda parte, Hamlet começa a entrar mais detalhadamente no problema da morte. “Morrer, dormir, não mais. E dormindo dizer que nós damos fim à dor no coração e aos milhares de choques naturais de que a carne é herdeira. Essa é uma consumação que deve ser devotadamente desejada”. Traduzindo: se o sujeito se mata, toda a dor acaba.

To die, to sleep;
To sleep? Perchance to dream – ay, there’s the rub:
For in that sleep of death what dreams may come,
When we have shuffled off this mortal coil,
Must give us pause.

Na terceira parte, Hamlet começa a levantar os problemas do suicídio. “Morrer, dormir. Dormir? Quem sabe sonhar – sim, aí está o problema. Pois nesse sono da morte que sonhos poderão vir, quando nós nos despirmos desse manto mortal? Isso nos faz hesitar”. Traduzindo: se eu morrer, o que acontecerá depois da minha morte?

There’s the respect
That makes calamity of so long life.
For who would bear the whips and scorns of time,
The oppressor’s wrong, the proud man’s contumely,
The pangs of despised love, the law’s delay,
The insolence of office, and the spurns
That patient merit of the unworthy takes,
When he himself might his quietus make
With a bare bodkin? Who would fardels bear,
To grunt and sweat under a weary life,
But that the dread of something after death,

Na quarta parte, Hamlet mais ou menos conclui os problemas de dar cabo de si mesmo. “Eis o respeito que torna calamitosa uma vida tão longa. Pois quem suportaria as chicotadas e o desprezo do tempo, a ofensa do opressor, a contumácia do homem orgulhoso, as dores do amor desprezado, a demora da lei, a insolência do oficial, o desprezo que o mérito paciente dos indignos leva, quando ele mesmo poderia trazer paz a si mesmo com um punhal? Quem se disporia a carregar o fardo, gemendo e suando sob uma vida fatigante, se não fosse pela ameaça de algo depois da morte?” Traduzindo: ninguém aguentaria tanta merda na vida, se não tivesse medo do que poderia acontecer consigo próprio depois de morto.

The undiscovered country from whose bourn
No traveller returns, puzzles the will,
And makes us rather bear those ills we have
Than fly to others that we know not of?

Na quinta parte, Hamlet prossegue com sua conclusão sobre por que a maioria de nós rejeita a idéia de suicídio. “O país não descoberto de cujo solo nenhum viajante retorna intriga a vontade, e nos faz preferir suportar esses males todos que temos a viajar para conhecer outros cuja existência ignoramos”.

Thus conscience does make cowards of us all,
And thus the native hue of resolution
Is sicklied o’er with the pale cast of thought,
And enterprises of great pith and moment,
With this regard their currents turn awry,
And lose the name of action.

Na última parte, Hamlet conclui sua reflexão em um misto de melancolia e ironia. “Essa consciência (sobre a ignorância do que acontece depois da morte) nos torna covarde a todos. E, assim, a tez natural da resolução é encoberta pelo pálido tom do pensamento. E empreitadas de grande essência e momento desviam-se do rumo e perdem até mesmo o nome de ação”. Traduzindo: o medo da morte faz com que desistamos de nos matar antes mesmo de tentá-la.

Que é demasiadamente metafísica para uma única peça de teatro, não há a menor dúvida. Mesmo assim, se você agora se aventurar a conhecer ou revisitar esse texto imortal, pelo menos vai saber exatamente do que se trata.

Abaixo, aquela que, na opinião deste que vos escreve, é a melhor interpretação do solilóquio, na direção/atuação soberba de Kenneth Branagh:

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