1º de maio de 1994.
Assim como o 11 de setembro de 2011, é o tipo do dia em que todo mundo que estava vivo (e tinha idade à época) se recorda onde estava. Por variados motivos, alguns mais nobres, outros nem tanto, aquele trágico domingo de 1994 marcou desde crianças que mal tinha consciência sobre a morte, até adultos em idade mais avançada.
Mas por que a morte de Senna marcou tanto aquela geração?
Campeões de Fórmula 1 o Brasil já tinha dois, antes mesmo de Senna fazer sua estréia na categoria. Emerson Fittipaldi – o pioneiro e sem dúvida o mais importante piloto da história do Brasil – e Nelson Piquet, outro tricampeão como Ayrton. Para entender o fenômeno Senna, é preciso voltar um pouco no tempo e contextualizar o momento histórico em que vivíamos.
Desde 1972, quando Fittipaldi levou seu primeiro caneco de campeão mundial de F1, o Brasil ficou mal acostumado com vitórias na categoria. Campeão novamente em 74, Emerson levou a bandeira brasileira para o topo do pódio das corridas mais famosas do mundo até pelo menos o final da década de 70.
Depois dele, outro gênio das pistas pegou o bastão e prosseguiu com a corrida. Dono de um temperamento ácido e afeito a polêmicas, Nelson Piquet possuía um talento inversamente proporcional ao seu carisma. Com a possível exceção de Nikki Lauda, ninguém jamais entendeu tanto de mecânica de um carro de corrida como Nelson Piquet. Seus ajustes lendário dos automóveis, numa época em que nem sequer havia telemetria, entraram para a história pela precisão.
Quando Senna estreou na Fórmula 1 em 1984, uma conjunção de fatores ajudou a catapultar seu inegável talento para o posto de ídolo máximo do automobilismo nacional.
Primeiro, Senna fazia o tipo bom moço, daqueles que qualquer mãe quer ter como genro. Numa época em que a TV (mais especificamente, a Rede Globo) fazia a fama ou a caveira de quem quer que fosse, Senna caiu como uma luva para projetar uma categoria que rendia milhões em publicidade à Vênus Platinada. Finalmente a emissora do Projac pôde se abraçar a um ídolo nacional da categoria, já que vivia às turras com Piquet e seu temperamento irascível, e Fittipaldi se tornara ídolo da concorrente Bandeirantes, com sua Fórmula Indy.
Em segundo lugar, o país tinha acabado de sair da ditadura militar e a promessa de vida nova oferecida pela Nova República ainda capengava na hiperinflação que os gorilas haviam nos legado. Por praticamente uma década, de 1984 até a criação do Real, em 1994, o famoso “complexo de vira-latas” enunciado por Nelson Rodrigues fazia do brasileiro um sujeito naturalmente casmurro, depressivo, como se vivesse em um país permanentemente condenado à miséria e à desgraça.
Pois era justamente nessas horas, quando o cidadão ligava a TV nas manhãs de domingo, que subitamente o brasileiro recobrava um pouco da esperança perdida. Ao ver um compatriota seu competir – e vencer, com autoridade – em um esporte de elite mundial, era como se Senna “vingasse” todos os brasileiros que andavam cabisbaixos pelos problemas nossos de todos os dias. “Sim, nós podemos”. “Sim, nós somos capazes”. “Sim, o brasileiro não é um filho enjeitado do mundo”. Eram esses os pensamentos que passavam pelas nossas cabeças, sempre que o automóvel de Senna fazia a volta da vitória carregando a bandeirinha do Brasil para fora do cockpit.
Pouca gente lembra, mas a morte de Ayrton Senna foi “apenas” o ponto culminante de um final de semana inteiramente trágico em Ímola. Nos treinos livres da sexta-feira, Rubens Barrichello – então somente uma nova promessa da F1 – literalmente voou por cima de uma chicane numa curva do autódromo. Visualmente, o acidente foi horrível, mas felizmente Barrichello não sofreu grandes ferimentos.
No dia seguinte, durante os treinos de qualificação para a corrida, aconteceu o pior. Rolland Ratzenberger, austríaco que pilotava o carro da desconhecida equipe Simtek, perdeu a asa dianteira do seu bólido e chocou-se violentamente contra o muro da curva Rivazza. Com múltiplas lesões no pescoço e na base do crânico, Ratzenberger morrera na hora. Pela primeira vez em doze anos, um piloto morria numa pista de corrida da F1.
O “circo” da Fórmula 1, contudo, não podia anunciar naquele instante que o pior se passara. Se o fizesse, o circuito teria de ser interditado. Assim como ocorrem em “cenas de crime”, somente após investigações da polícia judiciária italiana é que o autódromo poderia ser liberado. Ratzenberger, portanto, só foi dado como morto algumas horas depois, no Hospital Maggiore, em Bolonha. Caso a lei tivesse sido cumprida, a corrida prevista para o dia seguinte não teria acontecido. E, provavelmente, Senna estaria ainda aqui conosco.
Mas, como todo mundo sabe, infelizmente a corrida aconteceu. Na sétima volta, na agora tragicamente famosa curva Tamburello, a coluna de direção da Williams nº. 2 de Ayrton Senna rompeu-se, deixando o carro do piloto desgovernado a mais de 300 km/h. Daí pra frente, o que se sucedeu foi basicamente o mesmo que ocorrera com Ratzenberger, inclusive na circunstância infame de se esconder o óbito do ídolo brasileiro ainda na pista, para que a corrida pudesse continuar. Senna teve sua morte anunciada algumas horas depois, no mesmo Hospital Maggiore que, no dia anterior, tinha recebido o corpo do piloto austríaco.
De lá pra cá, a curva Tamburello foi descaraterizada numa variante de velocidade mais baixa, além de ter sido derrubado o muro contra o qual o bólido de Senna se chocou. Como não poderia deixar de ser, a segurança dos carros de Fórmula 1 aumentou muitas vezes, a ponto de se passarem duas décadas entre as mortes de Raztenberger e Senna em Ímola e o último acidente fatal da categoria (Jules Bianchi, em Suzuka, 2014). Infelizmente, parece ter sido necessária tamanha tragédia para que os dirigentes da F1 fizessem algo a respeito
Com a morte de Senna, o mundo perdia um gênio e o Brasil ficava sem um de seus ídolos máximos. Para a família e para os amigos, restou o luto. Para nós, que crescemos vendo Senna fazer a alegria das manhãs de domingo, restou somente o consolo de ter tido o privilégio de vê-lo atuar ao vivo, produzindo façanhas insuperáveis nas pistas.
Abaixo, uma de suas vitórias mais brilhantes, a sua primeira no GB do Brasil, correndo as últimas oito voltas somente com a sexta marcha do câmbio, na narração emocionante de Galvão Bueno: