O princípio da extraterritorialidade das embaixadas, ou A possibilidade de prisão preventiva de Bolsonaro

Parece até piada. E, de certa forma, o é.

Quando todo mundo imaginava que o festival de bizarrices do bolsonarismo tinha esgotado seu estoque de loucuras, eis que o The New York Times fura a imprensa brasileira inteira para mostrar que, em pleno carnaval, o ex-presidente Jair Bolsonaro passou duas noites escondido na embaixada da Hungria em Brasília.

Como de hábito, surgiram as explicações toscas de sempre (“esteve lá para atualizar cenários com autoridades daquele país”) e as desinformações típicas da imprensa tupiniquim (“embaixadas são território estrangeiro”). A oportunidade é propícia, portanto, para deitar algumas linhas sobre duas coisas quase sempre mal explicadas pelos jornalões e pelos portais de notícias: o princípio da extraterritorialidade das representações diplomáticas e os requisitos para decretação de prisão preventiva.

Ao contrário do divulgado por muita gente, embaixadas ou consulados não são (pode colocar negrito, por favor) território estrangeiro em nosso próprio país. O chamado “princípio da extraterritorialidade”, que preconizava esse entendimento, já se encontra superado há mais de um século. As representações diplomáticas de um país estrangeiro não constituem uma “extensão do território” do país representado. O solo por eles ocupados continua sendo, para todos os efeitos, território nacional (brasileiro, nesse caso).

“Quer dizer, então, que a polícia pode entrar livremente nessas representações?”

Também não.

Por mais que o lugar onde estejam encravadas as representações diplomáticas não possa ser considerado uma extensão do território do país que elas representam, o fato é que existe um sem número de convenções diplomáticas que põem a salvo tanto os locais onde estejam embaixadas e consulados, como os próprios diplomatas do país acreditante. A principal delas é a Convenção de Viena para Relações Diplomáticas, de 1961. Em seu artigo 22, está disposto expressamente que “os locais da Missão Diplomática são invioláveis. Os agentes do Estado acreditado não poderão neles penetrar sem o consentimento do Chefe da Missão”.

Como toda regra, essa também comporta exceções. Caso exista alguma emergência no local da embaixada – como um incêndio, por exemplo -, pode-se ingressar no terreno da representação diplomática sem pedir licença a ninguém. Fora dessas hipóteses excepcionais, prevalece a inviolabilidade tanto do local físico quanto dos diplomatas residentes no país estrangeiro. Ao contrário dos cidadãos comuns, eles só podem ser processados por crimes cometidos no território do país onde estejam acreditados caso seu próprio país abra a mão da sua inviolabilidade (art. 31 da Convenção de Viena: “O agente diplomático gozará de imunidade de jurisdição penal do Estado acreditado”).

Esclarecido este ponto, vamos à questão envolvendo as noites “húngaras” de Bolsonaro.

Do ponto de vista das “explicações” fornecidas pelos seus advogados, os pernoites do ex-presidente na embaixada da Hungria não fazem o menor sentido. Um ex-presidente pernoitar, por uma noite que fosse, numa representação estrangeira, já chamaria a atenção em qualquer lugar. Quando isso acontece em seu próprio país, a estranheza fica ainda maior. Mas, quando isso ocorre numa cidade em que o sujeito dispõe de residência própria (Brasília), não pode haver explicação outra senão uma tentativa de embaraçar o cumprimento de eventual ordem de prisão.

A hipótese de tentativa de refúgio fica ainda mais nítida quando se observa o contexto no qual se deu a, digamos, “hospedagem” de Jair Bolsonaro na representação húngara. Havia apenas quatro dias, Alexandre “Xandão” de Moraes havia mandado apreender o passaporte do ex-presidente. A medida cautelar diversa da prisão foi tomada justamente para impedir uma eventual fuga de Bolsonaro do território brasileiro, como ocorreu como seu auto-exílio na Disney a dois dias do fim do seu desgoverno. Sem ter como sair legalmente do país, ao ex-presidente – uma pessoa permanentemente atormentada pelo risco de ser preso – não restaria outra alternativa a não ser busca refúgio numa representação estrangeira.

Nesse sentido, parece lógica a escolha da embaixada húngara para um possível pedido de asilo diplomático. Viktor Órban é um dos parças de Jair Bolsonaro na rede mundial da extrema-direita. Fora isso, ele ocupa o posto mais estável entre os demais integrantes do grupo, pois Trump ainda não sabe se conseguirá voltar à Casa Branca e Benjamin Netanyahu só não foi ainda posto pra correr do governo de Israel por conta da guerra em Gaza.

Embora não tenha havido especificamente o descumprimento da medida cautelar – afinal, Bolsonaro não deixou o país -, o fato é que a procura de um possível asilo na representação estrangeira representa clara manobra para impedir a execução de uma futura sentença penal condenatória nos processos aos quais ele responde. O caso, portanto, comportaria claramente a aplicação do art. 312 do Código de Processo Penal, para “assegurar a aplicação da lei penal”. Do ponto de vista estritamente legal, portanto, as condições para decretação da prisão preventiva do ex-presidente estão dadas.

Mas Xandão decretará de fato a prisão de Bolsonaro?

É difícil dizer. O mais provável será que o ministro do STF determine alguma outra medida cautelar mais gravosa do que a apreensão do passaporte, mas alguma que não envolva especificamente a prisão. Uma aposta razoável seria ver Alexandre de Moraes impondo a Bolsonaro a obrigação de não se aproximar de representações estrangeiras, determinando o uso de tornozeleira eletrônica para controlar os passos da figura. Somente em caso de novo descumprimento haveria o decreto de prisão.

Seja como for, a farsa do “Mito”, defensor da moral e dos bons costumes, está cada vez mais difícil de se sustentar. Por mais criativas que sejam as redes do Zap profundo, em algum momento a realidade se impõe. E, nela, o que emerge é uma figura patética, caricatural, que passou a vida fugindo da responsabilidade por todos os malfeitos que praticou, e que agora vê-se assombrada pela perspectiva de finalmente ter de acertar suas contas com a Justiça. Manter acesa a chama do “valentão anti-sistema”, mesmo na realidade paralela da Bozolândia, será doravante cada vez mais difícil.

Carluxo vai ter trabalho…

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