Votos bem baseados, ou A hipocrisia da PEC contra as drogas

Parece até que estava desenhado.

Considerando um Supremo Tribunal “ativista”, um Congresso “conservador” e um Executivo inerte, a (necessária) discussão sobre a questão das drogas no Brasil acabou contaminada pelo reacionarismo bolsonarista, que enxergou em um julgamento do Supremo a oportunidade perfeita para vender-se ao distinto público como “defensor da moral e dos bons costumes”.

Explicando melhor a questão.

Há quase vinte anos, o Congresso aprovou a Lei nª. 11.343/2006. Numa tentativa de transformar o que se convencionou chamar de “uso recreativo” das drogas numa questão penal menor, o próprio legislador fez constar que:

“Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:

I – advertência sobre os efeitos das drogas;

II – prestação de serviços à comunidade;

III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

§ 1º Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica”.

Do ponto de vista legal, portanto, consumir ou portar drogas é crime. Ponto. O que esse dispositivo legal pretendeu alterar foi somente o tipo e a quantidade de penas que se impõem a quem, no jargão comum, é apenas um “usuário” de drogas ilícitas. A partir dessa lei – que, ressalte-se novamente, tem quase vinte anos -, usuário não deveria ir mais pra cadeia. Suas únicas penas seriam medidas socioeducativas e, em alguns casos, prestação de serviços à comunidade. Nesses termos, a legislação brasileira se associava às correntes mais modernas tanto a nível jurídico quanto a nível psicossocial, para quem o usuário não deve ser tido como “criminoso”, mas, sim, um caso de saúde pública a ser tratado pelo Estado.

O problema, contudo, é que nosso legislador nem sempre é dos mais felizes quando se trata de matéria prática. Isto é: como definir quem é usuário e quem é traficante? Ou, mais especificamente, qual limite de quantidade deve ser ultrapassado para que, ao invés de mandar o sujeito para tratamento de dependência de drogas, mande-se o traficante para a cadeia?

Para essas perguntas, como de hábito, o legislador nos premiou com uma norma assaz genérica, na qual, como coração de mãe, cabe todo tipo de interpretação:

“§ 2º Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente”.

À falta de um critério legal objetivo e específico, a definição das fronteiras entre o “usuário” e o “traficante” ficou a cargo dos policiais militares responsáveis pela apreensão da droga, ou, então, do delegado plantonista responsável pelo flagrante. E aí, como seria de esperar, instalou-se a balbúrdia, a ponto de termos um mesmo estado (São Paulo) em que as definições de quantidade de drogas para diferenciar um e outro caso são diferentes, a depender se o sujeito flagrado com entorpecentes está na capital ou no interior.

Foi nesse contexto que entrou o Supremo Tribunal Federal. Julgando um caso de um recurso extraordinário interposto pela Defensoria Pública de São Paulo, em que um sujeito fora preso por portar 3g – isso mesmo: TRÊS GRAMAS – de maconha, o Supremo colocou-se diante do dilema do citado art. 28 da Lei Anti-Drogas: quem é usuário e quem é traficante?

Para cinco ministros que já votaram, estaria presumido como usuário “o indivíduo que estiver em posse de até 60 gramas de maconha ou de seis plantas fêmeas, sem prejuízo da relativização dessa presunção por decisão fundamentada do Delegado de Polícia”. Ou seja: o primeiro ponto a destacar é que, ao contrário do aventado por boa parte da mídia, o Supremo NÃO está a descriminalizar as drogas. O que ele está fazendo, nesse caso específico, é definir um parâmetro objetivo para estabelecer uma distinção que o legislador, por preguiça ou por falta de apuro técnico, deixou de fazer.

Repare-se que o STF restringiu os alcances da sua decisão a uma só droga ilícita (a maconha). E, ainda assim, o Supremo permitiu que, nos casos concretos, havendo outros indícios que permitam inferir tráfico, a autoridade policial poderá afastar a norma penal mais benéfica e mandar o traficante pro xilindró. Toda a grita da “ala conservadora” do Congresso, pois, não tem a menor razão de ser.

Mesmo assim, como vivemos tempos estranhos, em que os “valores morais” costumam ser usados como cortina de fumaça por gente desqualificada para “reverberar sua hipocrisia e “lacrar” no Zap profundo, a tal da “PEC das Drogas” encontrou solo fértil para prosperar.

Para além da bizarrice de trazer uma matéria completamente ordinária para o nível constitucional, o texto da PEC não faz a menor questão de esconder sua indignação seletiva ao determinar que “é vedada a legalização, para fins recreativos, de quaisquer outras drogas entorpecentes e psicotrópicas que causem dependência física ou psíquica, além das já consideradas lícitas pelo ordenamento jurídico vigente”. Os legisladores responsáveis por essa estultice poderiam ao menos ser mais honestos nos seus propósitos, deixando claro que “fabricantes de bebida e cigarro encontram-se fora do alcance da norma”.

Não se pretende, aqui, fazer qualquer apologia da maconha. Muito pelo contrário. Para alguém que, como o autor, entende os malefícios contidos no tabaco, seria um contrassenso admitir como inofensivo o cigarro feito à base de cannabis. Ainda assim, soa no mínimo hipócrita alguém vir vociferar contra a maconha quando se sabe, com base em números amplamente conhecidos, que os males e as mortes causados pelo álcool e pelo cigarro adicionado de nicotina são muito maiores em número do que os que envolvem os famosos “becks”.

Para que tenhamos uma discussão saudável e minimamente honesta sobre o tema, é necessário, antes de mais nada, barrar na entrada a hipocrisia. Do contrário, continuaremos a ter somente mais do mesmo: o consumo de drogas aumentando; o tráfico ficando mais rico e mais poderoso; e a nossa política cada vez mais entregue a reducionismos baratos, que só servem para vender soluções simplistas para problemas complexos.

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