O saldo do Ustrapalooza, ou O futuro da direita brasileira no pós-bolsonaro

Da onde menos se espera, daí é que não vem mesmo, diria o Barão de Itararé.

Anunciada há pouco mais de um mês, a manifestação convocada por Jair Bolsonaro “em defesa do Estado Democrático de Direito” (risos) levou um mundaréu de gente à Avenida Paulista em São Paulo. Ao cobrir o evento, a imprensa brasileira – como de hábito – produziu mais algumas daquelas “análises” tão rasas quanto um pires. Houve basicamente dois grupos: os que ficaram em negação quanto ao tamanho do público presente; e os que, reconhecendo a grande quantidade de gente, ficaram “emocionados”, como se a ditadura bolsonarista – malograda com Bolsonaro no poder – estivesse prestes a ser instalada agora.

Nem tanto ao mar, nem tanto à terra.

Pra começo de conversa, reconheça-se o óbvio: muita gente acorreu à Paulista. Desconsiderando-se os bizarros 600 mil participantes chutados pela Secretaria de Segurança do Estado de São Paulo, o monitor do debate político da USP indica 185 mil presentes no momento de maior aglomeração. É quase a lotação do antigo Maracanã, antes do crime arquitetônico perpetrado quando ele foi reformado para a Copa de 2014. Negar a realidade é embarcar no mesmo mundo de fantasia no qual boa parte da Bozolândia insiste em viajar.

Contudo, reconhecer o tamanho da manifestação não significa “emocionar-se”, muito menos achar que agora Bolsonaro vai retornar em triunfo para implantar a ditadura que, como presidente, falhou em conseguir. Significa apenas reconhecer que o bolsonarismo mantém uma capacidade de articulação relevante na sociedade. Mas isso em si seria novidade? Claro que não.

“Ah, mas como é que tanta gente assim se junta para apoiar o Bolsonaro, depois de tudo que se descobriu sobre a trama golpista?”

A resposta é relativamente simples.

A julgar pelas pesquisas de opinião, 40% da população nutre ódio visceral ao PT. Estimemos que metade disso seja de “bolsonaristas-raiz”, daqueles que acham que Lula é comunista e Alexandre Xandão de Moraes é o responsável por implantar uma “ditadura do Judiciário” no país. Em um cálculo grosseiro, 20% de 200 milhões de pessoas são 40 milhões. 200 mil pessoas, portanto, são apenas uma pequena fração dessa parcela da sociedade que insiste em viver no universo onde a Terra é plana.

Há de se lembrar, ainda, que, para essa parcela mais radical dos bolsonaristas, a raiva contra o “sistema” vem justamente do fato de não ter havido um golpe. A mesma galera que se aglomerou em frente aos quartéis é aquela que faz corrente em WhatsApp contra os militares legalistas que não aderiram ao golpe, alcunhando-os de “melancias”. Não espanta, portanto, que Bolsonaro ainda consiga reunir cerca de 200 mil desses exemplares.

Claro, nem todo mundo que enxerga em Bolsonaro o “mito” mora em São Paulo ou tem vontade de sair de casa para vê-lo discursar com seu português sofrível. Deve-se, entretanto, levar em consideração o contexto da manifestação. De forma proposital, Bolsonaro e sua trupe concentraram todas as suas forças para produzir um ato maciço em São Paulo. Tivesse havido manifestações em outras capitais, como ocorria quando Jair era presidente, haveria massa de gente significativa para impressionar o público? Embora se trabalhe aqui no campo das mais pura especulação, não é de todo desarrazoado imaginar que não.

Mesmo assim, se não se pode dizer que a manifestação foi um “fracasso”, tampouco se pode dizer que foi um “sucesso”, é bem outra coisa. Dois eram os propósitos de Bolsonaro com o Ustrapalooza (cortesia do genial Celso Rocha de Barros): o primeiro, demonstrar “força”, ameaçando com o “fim do mundo” caso o STF expeça um mandado de prisão contra ele; o segundo, tentar sensibilizar a classe política com sua infame proposta de anistia aos golpistas de 8 de janeiro (com ele incluso, por certo).

O primeiro objetivo teve ressonância zero no Supremo (como, aliás, era amplamente esperado). E, se havia alguma dúvida em relação ao seu resultado, a deflagração de mais uma operação da PF hoje contra os financiadores dos acampamentos golpistas terminou de jogar por terra qualquer pretensão intimidatória. Quanto ao segundo objetivo, até agora um total de zero líderes do Congresso vieram a público defender que se anistiasse quem quer que seja. Logo, do ponto de vista prático, tudo como dantes no quartel de Abrantes.

Se houve algum efeito, digamos, “positivo” para Bolsonaro como resultado do Ustrapalooza foi o fato de, pelo menos momentaneamente, Jair ter conseguido interditar as vias à direita do espectro político. É como se nenhum candidato pudesse se lançar em oposição ao PT se não tiver as bençãos do clã Bolsonaro. Daí porque Tarcísio Vieira, Ronaldo Caiado e Romeu Zema, os três principais candidatos a herdeiro do espólio de votos do bolsonarismo, estavam lá na Paulista, em apoio a Bolsonaro.

Essa conclusão, contudo, é errada, por diversos motivos. Muita gente boa da imprensa enxerga em Jair Bolsonaro um fenômeno eleitoral, como se ele fosse uma espécie de “Lula da direita”. O que esse pessoal não consegue enxergar é que aquele sujeito do “baixo clero, escrotizado, sacaneado, gozado” nunca realmente passou de “uma porra de um deputado” (palavras do próprio).

A infeliz conjunção astral que, em 2018, catapultou o ex-capitão do Exército (corrido para não ser expulso) à Presidência não o transformou em um portento eleitoral. Bolsonaro não é nem nunca foi o “Lula da Direita”, assim como não foram Fernando Collor (1990), Fernando Henrique Cardoso (1994 e 1998), José Serra (2002 e 2010), Geraldo Alckmin (2006) e Aécio Neves (2014). Como todo os oponentes do ex-sindicalista do ABC desde a redemocratização, Bolsonaro apenas ocupa – momentânea e transitoriamente – o posto de “anti-Lula”. Quando ele enfim voltar a ser carta fora do baralho, por vontade própria ou por prisão, seu posto será rapidamente alugado a outro qualquer, não necessariamente alguém oriundo da fina flor do bolsonarismo.

O que a direita brasileira precisa, pois, é cair na real e superar a tragédia do bolsonarismo. Hoje, o ex-capitão só tem um projeto: salvar-se da cadeia. Se Lula resolvesse patrocinar sua anistia, era até capaz de ele mesmo se converter ao lulismo. É engano, portanto, achar que Bolsonaro atuará como “líder da oposição”. Dele não virá nenhuma proposta genuinamente contrária à plataforma petista, muito menos uma articulação política contra a agenda do governo. Seu propósito único e exclusivo é evitar a prisão. Qualquer ação partindo dele – inclusive os Ustrapaloozas da vida – tem, necessariamente, de ser enxergada sob essa ótica.

Quando a direita resolver enterrar este cadáver insepulto do golpismo militaresco, será enfim possível organizar um agenda liberal e conservadora de verdade. Só assim a direita conseguirá arregimentar o centro político, que embarcou em peso na canoa lulista para evitar o abismo de uma reeleição de Bolsonaro. Enquanto isso não acontecer, Lula continuará nadando de braçada, sem que haja ninguém no espectro político que consiga lhe fazer oposição de verdade.

É esperar pra ver.

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