Pagando(?) pra ver, ou A loucura da dolarização argentina

A piada é antiga, mas a ocasião convida a rememorá-la. O sujeito muito burro disserta sobre os transtornos da sua vida, quando enuncia em tom triunfal a “solução” encontrada por ele:

“Eu estava à beira do abismo e tomei a decisão correta: dei um passo à frente”.

Tal é a sensação de quem assiste ao que se passa na nossa vizinha Argentina. Exatamente como foi previsto aqui, nuestros hermanos decidiram acabar com os próprios problemas praticando harakiri coletivo. Entre continuar na desgraça peronista – que pelo menos é conhecida – e mergulhar no escuro com um sujeito que alega receber mensagens do outro plano de seu falecido cachorro, os argentinos escolheram a segunda opção. Assim como ocorreu no Brasil, a perspectiva não é nada boa e os quatro anos de desgoverno bolsonarista estão aí para mostrar o quão fundo se pode descer na escala de (in)dignidade quando se coloca um bufão autoritário no poder. A crença de que a Argentina não está mais sujeita a golpes bananeiros, por conta do julgamento das juntas militares em 1985, será enfim posta à prova. Tomara que ela se mantenha.

Mas não é sobre isso que este post pretende tratar. Não bastassem os riscos à democracia, Javier Milei enfileirou uma sequência poucas vezes vista de excentricidades econômicas em suas “propostas”. Para além da bizarra proposta de extinguir o Banco Central do país, Milei ainda voltou com a velha cantilena da “dolarização” da economia. “Bala de prata” de 11 em cada 10 economistas embusteiros, a dolarização não passa de uma variante da máxima menckeniana segundo a qual, para todo problema complexo, existe uma solução simples (e, em geral, errada).

Explicar a dolarização é relativamente fácil, mesmo para leigos em questões macroeconômicas. Troca-se a moeda do país pelo dólar norte-americano, que passa a circular em seu lugar, servindo, a um só tempo, como meio de troca, reserva de valor e unidade de conta. Onde você via, por exemplo, pesos para comprar pães numa padaria, agora se verão dólares fazendo a mesma função. No lugar de depósitos em moeda nacional, contas-correntes denominadas em dólar. Tudo muito fácil, tudo muito simples, né?

Só que não.

Pra começo de conversa, qualquer debate sério acerca da dolarização de uma economia depende – como parece evidente a qualquer néscio – de uma matéria-prima básica: dólar. A Argentina simplesmente não os tem. Pelo contrário. Segundo cálculos extraoficiais, as reservas em moeda forte do país são, hoje, negativas em cerca de US$ 10 bi. Não por acaso, o dólar no paralelo (o tal do “dólar-blue” argentino) é negociado a uma taxa quase três vezes maior do que a cotação oficial do câmbio. E, se não há dólares, como fazer para trocar os pesos em circulação pela moeda norte-americana?

Ainda que houvesse dólares suficientes para realizar essa mandrakaria contábil, a dolarização está longe de ser a solução para qualquer país relativamente grande. E a Argentina – por pior que pareça – está longe de ser um anão econômico no cenário global.

Ao se trocar a moeda oficial do seu país pela moeda de outro (o dólar, que seja), esse país estará automaticamente abrindo mão do controle de sua política monetário, transferindo-a para o banco central do país emissor da moeda que vai circular. No caso do dólar, as taxas de juros negociadas na economia não serão mais ditadas pelo Banco Central do país, mas, sim, pelo FED, o Banco Central norte-americano. Isso significa que, caso os Estados Unidos precisem subir os juros por conta de aumento de inflação por lá, os argentinos terão de pagar mais caro pelo dinheiro da mesma forma, ainda que sua economia esteja deflacionária (o mesmo vale na mão inversa).

Se isso não fosse bastante, dolarizar a economia só funcionaria, em tese, numa economia superavitária nas transações correntes, isto é, que recebesse mais dólares do que enviasse para fora do país. Por quê? Imagine, para citar um exemplo simplório, que o PIB do país aumente e, consequentemente, a riqueza também passe a circular mais. Nesse caso, você precisa de um aumento da base monetária (mais dólares) para fazer frente a esse aumento de demanda, já que você não pode simplesmente imprimir mais dinheiro, como ocorre em países que detêm sua própria moeda. É exatamente o contrário do que ocorre na Argentina, em especial por conta do serviço da dívida cavalar que o país detém no exterior, com o FMI estrelando o rol de credores ilustres.

Para piorar, caso haja qualquer balançada no mercado internacional, a tendência natural é o dinheiro seguir para mercados mais seguros, em especial o norte-americano. Em um país “normal”, como o Brasil, isso significa somente uma mera desvalorização do câmbio, mas o mundo não se acaba por conta disso. Numa economia dolarizada, isso significa diminuição direta da liquidez da economia, crédito mais escasso e, por conseguinte, recessão.

Das muitas maluquices propostas por Javier Milei, essa é talvez a mais impraticável e delirante de todas elas. Mesmo assim, não convém subestimar a figura. Quando Jair Bolsonaro foi eleito no Brasil, muita gente boa acreditou na conversa de que tudo aquilo era só promessa de campanha e que o Centrão e os militares atuariam para “moderá-lo”.

Deu no que deu.

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