Supremo legislador, ou Até onde vai a omissão do Congresso?

Deixando de lado, por ora, as guerras que atormentam o mundo no cenário internacional, voltemos a analisar as batalhas nossas de cada dia, desenroladas que são entre os tais “três poderes”, nem sempre (quase nunca, na verdade) “harmônicos entre si”.

Desde quando Rosa Weber desenhou seu projeto de aposentadoria, o embate entre Supremo e Congresso estava dado. Saindo de cena, tendo marcado sua trajetória na judicatura como uma magistrada firme e discreta, Rosa Weber deixou claro, para quem quisesse ouvir, que pretendia deixar um “legado” como presidente do Supremo Tribunal Federal.

Para bom entendedor, meia pauta basta. Rosa Weber colocaria em votação todos aqueles temas considerados “sensíveis”, que o STF há anos se esquivava de enfrentar sob o argumento de que não queria colocar lenha na fogueira, isto é, incensar ainda mais os ímpetos autoritários contra a Corte. Tendo passado quatro anos sob ameaça real de fechamento ou mutilação, há de se reconhecer que alguma razão havia nesse argumento.

Contudo, o que Rosa Weber parece ter feito não foi simplesmente “desafogar” a pauta, mas, sim, chutar o pau da barraca. Valendo-se do pretexto – já por demais surrado – de que o Congresso seria “omisso” ao tratar certos direitos das minorias, caberia ao Supremo dar esse “impulso na história”, no que cumpriria o papel “iluminista” ao qual o Ministro Luís Roberto Barroso gosta de se referir.

Mas quando é que, de fato, pode-se considerar que o Congresso está omisso?

Pra início de conversa, há de se definir claramente do que se está a tratar. Afinal, o sentido de “omisso” não está aqui no seu uso vulgar, assim entendido como deixar ficar a coisa como está, para ver como é que fica. Não, absolutamente. A “omissão” que justifica, em tese, a intervenção do Supremo Tribunal Federal é somente a “omissão inconstitucional”, isto é, o deixar de agir que se encontra em confronto com um mandamento constitucional. Não é, portanto, qualquer omissão que autoriza a intervenção do STF, mas somente a omissão que esteja qualificada por uma inconstitucionalidade.

Estabelecidos esses parâmetros básicos, pode-se entender a razão do erro evidente da ministra Rosa Weber ao querer transformar sua reta final de mandato como presidente do STF em estuário da resolução de todas as quizílias jurídicas do país. Não é porque uma causa é social ou moralmente simpática que o Supremo está autorizado a passar por cima do Congresso e legislar em seu lugar. Até porque, como bem sabemos, os humores da sociedade são mais volúveis que uma ária de Verdi, não sendo razoável admitir que a mais alta corte de Justiça do país decida com base em vontades momentâneas, ainda que aparentem ser majoritárias.

Veja-se, por exemplo, o caso do aborto. Não há nada na Constituição que trate do assunto. Somente através de uma interpretação demasiadamente extensiva do princípio da dignidade da pessoa humana é possível subsumir que o legislador constituinte tenha querido regular, de alguma forma, o encerramento da vida pré-natal. Pior. Goste-se ou não, o legislador ordinário (aquele que faz as leis do país) já regulou a matéria, estabelecendo em quais hipóteses o abortamento está autorizado, e em quais ele será tido como crime.

Não há, pois, qualquer embasamento fático ou jurídico a justificar que o Congresso brasileiro esteja “omisso” nessa matéria, ainda mais se analisarmos a questão unicamente pela via constitucional. O que parte da parcela jurídica quer vender – parcela esta que inclui a ex-ministra Rosa Weber – é que a não autorização em si mesma constituiria uma omissão do Congresso, quando não há qualquer mandamento constitucional a dizer o contrário do que o legislador estabeleceu no Código Penal.

Para deixar as coisas em pratos limpos, portanto, é preciso entender que a discussão acerca da autorização do aborto puramente discricionário, assim entendido como aquele em que se outorga à mulher o direito de decidir livremente se carregará ou não a gestação adiante, não passa pela interpretação das normas constitucionais, mas, sim, pela alteração das normas legais através do Parlamento.

Há, claro, um oceano de oportunismo e hipocrisia nesse debate. Senda fértil para a extrema-direita bolsonarista, a discussão sobre o aborto acaba por vezes envenenando o debate político no país, como se os “cidadãos de bem” fossem os verdadeiros defensores da “moral e dos bons costumes”. Não são e nunca foram, menos ainda depois do que ocorreu no 8 de janeiro. Enquanto eles dizem defender “a vida”, sabotaram o distanciamento social e fizeram de tudo para que a população não se vacinasse, única alternativa que afinal nos livrou da pandemia.

Mesmo assim, é estúpido tentar bypassar o Congresso por meio de uma intervenção voluntarista do Supremo, como se fosse possível substituir a atividade de um (legislar) pela do outro (julgar). O princípio básico da democracia é o respeito às regras do jogo. Tentar violá-las a pretexto de defender um “bem maior” significa abrir a caixa de Pandora para coisas que nenhum de nós imagina. Ou, talvez, para coisas bem familiares.

Que o digam os quatro anos de desgoverno bolsonarista que assolou esta nação….

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