Supremo sigilo, ou A proposta estapafúrdia de Lula

Era só o que me faltava.

O Brasil ainda se recuperando do 8 de janeiro, a economia tropeçando para tentar ganhar a tração que perdeu durante o desgoverno bolsonarista e qual é a proposta do Presidente da República? Tornar sigilosos os votos dos ministros do Supremo Tribunal Federal.

Para que não haja dúvidas sobre suas palavras, vejamos textualmente o que o próprio Lula disse: “A sociedade não tem que saber como é que vota um ministro da Suprema Corte. Sabe, eu acho que o cara tem que votar e ninguém precisa saber”. O “argumento”, segundo o Presidente, é de que “do jeito que vai, daqui a pouco um ministro da Suprema Corte não pode mais sair na rua, não pode mais passear com a sua família, sabe, porque tem um cara que não gostou de uma decisão dele”. A um só tempo, essa proposta é insultuosa na forma e extravagante no conteúdo. Transforma aquele que já é o poder mais refratário ao controle popular numa espécie de cartola de mágico, da qual poderá sair toda sorte de coelhos.

Feito o estrago, logo acorreram os passa-panistas de turno para tentar suavizar a bizarrice pronunciada pelo Presidente. Para além dos tradicionais “veja bem” e “fala tirada do contexto”, vieram os “juristas” de ocasião – e bota aspas nisso – tentar socorrer Lula com comparações esdrúxulas a cortes alienígenas. Como de hábito, brilhou nesse quesito a Suprema Corte norte-americana. Logo ela, a instância jurisprudencial maior do “Grande Satã” da esquerda latinoamericana, os Estados Unidos.

Pra começo de conversa, o processo decisório na Suprema Corte dos Estados Unidos não tem nada de sigiloso. Ao contrário do que tentaram vender os rábulas de final de semana, todo mundo sabe: 1 – quem votou; e 2 – por que votou. A única diferença para o nosso STF de hoje diz respeito ao modo com o qual se chega a uma decisão final.

Aqui, os ministros do Supremo se reúnem e saem votando um por um, na frente de todo mundo (inclusive das câmeras da TV Justiça). No final, contam-se os votos que mais se aproximam entre si para chegar-se a uma maioria. O primeiro ministro que proferiu o voto dessa maioria, em regra, é nomeado para redigir o acórdão do caso, que posteriormente é publicado no Diário da Justiça.

Nos EUA, ao revés, os nove juízes da Suprema Corte reúnem-se numa sala de debates para decidir o caso à vista de ninguém. Feito isto, escolhem apenas um deles para escrever o que seria o nosso “acórdão”, isto é, o voto representativo da maioria formada. Quem perde, acompanhado ou não, escreve um voto em separado, indicativo da minoria derrotada.

Verifica-se, portanto, que a única parte de fato sigilosa no processo decisório da Suprema Corte norte-americana são os debates internos entre os magistrados. De resto, todo o processo é feito às claras, com identificação clara e precisa de qual juiz votou em quê, e porque votou naquilo. Como gostava de repetir um dos juízes mais famosos de lá, a luz do sol é o melhor detergente (Louis Brandeis).

Não bastasse as esquisitices aparentes, a proposta formulada por Luís Inácio Lula da Silva embute alguns problemas difíceis de compatibilizar com nosso sistema jurídico e, mais importante, com nosso sistema democrático. No nosso esquema de tripartição de poderes, Executivo e Legislativo haurem sua legitimidade diretamente do povo, através do voto. Ao Judiciário, inteiramente representado por cidadãos não eleitos, resta fundar sua legitimidade na fundamentação racional de suas decisões. Sem isso, abre-se espaço para o arbítrio e para aventuras outras que o Brasil parecia ter superado com a derrota de Bolsonaro, mas que, infelizmente, volta e meia teimam em aparecer.

Argumenta-se que, do modo como está, os ministros do Supremo podem ser vítimas de toda sorte de pressões e ameaças. Mas é justamente por conta disso que, desde a investidura, ocupam um cargo vitalício, com direito a salário pingando na conta mensalmente, motorista particular e segurança armado. Se, com tudo isso, o sujeito ainda quer reclamar das intempéries do cargo que ocupa, a única solução é aquela recomendada pelas crianças cariocas àquelas que não gostam de se submeter às vicissitudes dos parquinhos infantis: “Se não sabe brincar, então não desce pro play”.

O que houve, no fundo, foi uma tentativa mui mal ajambrada de Lula de tentar proteger seu ex-advogado particular e mais novo ministro do STF, Cristiano Zanin. Tendo incendiado os setores “progressistas” dos apoiadores do governo com votos considerados “conservadores”, Zanin caiu logo em desgraça com a militância petista, que já se assombra com os cotados para a próxima vaga a ser aberta, da ministra Rosa Weber.

Se for esse o caso, tudo bem; faz parte do jogo. Só não vale, para isso, mexer com as estruturas da mais alta corte de Justiça.

Porque o Supremo de fato tem muitos problemas, mas a publicidade dos votos dos seus ministros certamente não é um deles.

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