Por uma justiça de transição, ou A oportunidade para enterrar o fantasma militar

Eu sei, eu sei.

O tema dos militares e a política já foi abordado aqui uma centena de vezes. Ninguém que acompanha o Blog há pelo menos seis meses terá qualquer dúvida acerca da posição deste que vos escreve acerca da mistura venenosa entre o mundo da caserna e o mundo civil. Os mais antigos leitores deste espaço provavelmente levarão a mão espalmada à testa, em um misto de angústia e decepção, por conseguirem antever o que virá escrito adiante. O aborrecimento decerto tem lugar, mas há justas razões para não deixar passar (mais essa) oportunidade de revistar o tema.

Que o Brasil sempre foi uma república de bananas, parece fora de questão. Na sua definição clássica, as bananeiras dão na república em que os militares se sentem autorizados a, de quando em vez, sair dos quartéis e ir depor um governo eleito. A América Latina é pródiga em exemplos dessa natureza e o Brasil dos séculos XIX e XX não fugiu à regra, tendo sido a própria República – ela mesma – fundada por meio de uma quartelada bananeira.

Talvez por isso mesmo, pelo fato de o mito fundador da nossa transição de um poder hereditário e vitalício (monarquia) para um regime em que o poder é apenas temporário e eletivo (república) derivar de um golpe provinciano, os nossos fardados tenham passado a crer que são os donos do pedaço. Normal. Há uma certa prepotência incensada pela vaidade quando determinada glória é alcançada.

Mas eles não são. Nunca foram. Os militares gostam de se arvorar de “defensores da Pátria” e “guardiões da democracia” como se a sua classe tivesse vindo de Marte, movida por alguma espécie de nobreza moral impoluta, que coloca o cidadão armado a serviço do outro, indefeso. Não, pelo contrário. Os militares são: 1 – treinados pelo Estado; 2 – armados pelo Estado; e 3 – têm seus salários pagos pelo Estado. Não há razão, portanto, para que a República viva assombrada pela força armada, como se dela fosse refém.

Essa fantasia originária que coloca os militares em um mundo à parte, supostamente mais honesto e despretensioso do que o mundo dos paisanos, é que lhes permite cultivar privilégios que soariam injustificáveis mesmo em um estado absolutista do século XVII. Só essa crença explica a razão de jamais termos visto, em tempo algum, militares criminosos que atentaram contra a República (com R maiúsculo) irem às barras dos tribunais e arrostarem condenações pelos maus feitos que praticaram.

A tradição brasileira de contemporizar, de colocar uma pedra sobre o passado, traduz-se quase sempre na forma de anistia. A esperança, como sempre, é de que ela traga um futuro melhor, de calma e de tranquilidade. A experiência, contudo, ensina o contrário. Vez após vez, as sucessivas anistias a militares criminosos já demonstrou à saciedade o quão vã é essa esperança e o quão deletério é deixar impunes os pecados pretéritos, motivadores que são, ao revés, de renovados pecados em futuro não tão distante. Foi assim que os erros de 30 foram repetidos novamente em 37, para depois serem reprisados em 64 e – por que não dizer? – revividos em 79, para ficar apenas nos exemplos mais vulgares.

Agora, não. Quando todo mundo achava que a perspectiva de termos militares no poder havia chegado ao fundo do poço e sido definitivamente extirpada após a tragédia do Regime Militar, veio o desgoverno Bolsonaro para mostrar que, no fundo desse poço, havia um alçapão. Pois, se é verdade que não tivemos a tortura institucionalizada ou um regime de perseguição aberta a adversários, também é verdade que as Forças Armadas – ou, pelo menos, vários de seus oficiais, dos soldados mais rasos a generais de quatro estrelas – juntaram-se e amasiaram-se gostosamente em um governo responsável por, pelo menos, 120 mil mortes evitáveis na pior pandemia que o mundo experimentou em um século. Pior. Houve mesmo aqueles que se envolveram até a medula numa conspirata mequetrefe para impedir a posse do governo eleito, assunto que o Ministro Alexandre “Xandão” de Moraes e a PF investigam com esmero.

Como se desgraça pouca fosse bobagem, vemos todos os dias se desvelar diante dos nossos olhos, tal qual o roteiro de uma ópera-bufa ou de uma comédia-pastelão, detalhes sórdidos de como fardados ajudaram e participaram de um aparente esquema de desvio de jóias do patrimônio público nacional, para depois serem revendidas nas mesmas lojas em que os “crackudos” norte-americanos transformam colares roubados em dólares para comprar drogas. A extensão do esquema e até que ponto ele serviu para pagar os boletos da família Bolsonaro é algo ainda a ser esclarecido, mas a expressão do Tenente-Coronel Mauro Cid de que “quanto menos dinheiro transitar pela conta, melhor” é bastante sintomática da profundidade do abismo em que eles se meteram.

Nessas horas, é sempre bom recordar o exemplo argentino. Com todas as desgraças que já se abateram sobre nuestros hermanos – e elas não foram poucas – desde que a última ditadura de generais foi deposta, nunca se ouviu sequer sussurro de gente propondo golpe de Estado. Por quê? Porque Jorge Rafael Videla, o mais emblemático dos presidentes-generais portenhos, morreu aos 87 anos sozinho e esquecido na prisão, sentado em um vaso sanitário imundo e sem assento, siderado por uma diarréia.

O Brasil, portanto, está numa daquelas encruzilhadas da História, nas quais o lado a ser escolhido definirá não somente o rumo a seguir, mas a forma com a qual o país chegará ao seu destino. Parafraseando o promotor Júlio César Strassera, essa é a nossa oportunidade.

Y quizá sea la última.

Abaixo, o trecho completo da alegação final de Strassera no julgamento da ditadura argentina:

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