A briga do governo com o Banco Central, ou Em busca de um bode expiatório

Voltando às pautas “normais” depois de duas semanas com especiais aqui no Blog, é hora de analisar o tema do momento: o embate entre o governo com o Banco Central. Ou, para ser mais específico, a briga entre Lula e Roberto Campos Neto.

Para situar quem ainda não se inteirou do caso, a questão é basicamente a seguinte: há mais ou menos uma semana, o presidente Lula dia sim, o outro também, vem descendo o sarrafo na taxa de juros fixada pelo Banco Central. Centrando fogo na figura do seu presidente, Roberto Campos Neto, Lula tem soltado os cachorros contra a Selic de 13,75% que herdou do desgoverno Bolsonaro. Não só isso. Muita gente da base aliada do presidente entrou na onda e, subitamente, Campos Neto foi transformado em Judas da economia brasileira. Como se tivéssemos antecipado o sábado de Aleluia, todo dia é dia de malhar RCN nas tevês, nas rádios e nas mídias sociais.

O presidente do Banco Central tem lá seus motivos para apanhar, é bem verdade. Quem acompanha o Blog, por exemplo, pôde ver aqui um dos erros de RCN e sua trupe. Sob pretexto de impulsionar uma economia deprimida pela pandemia de Covid, o BC baixou os juros para suíços 2% a.a. E não só isso. Lá os deixou por bastante tempo, muito mais tempo do que seria recomendável. Toda vez que algum indicador mostrava os reflexos dessa taxa de juros na formação dos preços, o Banco Central respondia que a inflação seria “temporária”.

De passada de pano em passada de pano, os erros foram se acumulando até que, quando os excrementos já haviam batido no ventilador, a única alternativa que restou à diretoria do Banco Central foi subir a Selic a níveis assombrosos em ritmo acelerado. Pode parecer uma crítica exagerada, mas não há registro de Banco Central no planeta que tenha saído de uma taxa de 2% para uma taxa de quase 14% em pouco mais de um ano. Para usar as percentagens tão caras ao pessoal de “o mercado”, são praticamente 700% de aumento no custo do dinheiro. Ou bem foi erro baixar a taxa a 2%, ou foi erro aumentar para 13,75%. E isso não exclui a hipótese de ambos os movimentos estarem errados, o que provavelmente foi o caso do BC brasileiro.

Para além dos erros técnicos, que não impediram que o BC descumprisse a meta de inflação nos últimos dois anos, Roberto Campos Neto ainda traz consigo um contestável legado de condutas indesejadas como presidente do Banco Central. Se a idéia era de que o presidente do BC fosse independente, que raios fazia RCN nas reuniões de ministros do governo passado? Por que participava de festas e convescotes ao lado de integrantes do ministério passado, Paulo Guedes à frente deles? Pior. Que fazia Campos Neto – já em 2023! – em um grupo de WhatsApp intitulado “Ministros de Bolsonaro”?

Tudo isso, é óbvio, depõe contra a esperada isenção que se espera de um presidente de autoridade monetária que se pretende “autônoma” a “independente”.

Faz o quê, então? Baixa o cacete no RCN?

É aí que a porca entorta o rabo.

Por maiores que sejam as críticas a Campos Neto – e elas são realmente justas – o fato é que ele não é responsável direto pelo patamar em que a Selic se encontra hoje. Pagamos, na verdade, a conta da farra fiscal instituída pela tal “PEC Kamikaze” destinada a financiar a frustrada tentativa de reeleição de Jair Bolsonaro. Os gastos desmedidos no ano reeleitoral de 2022 cobram o seu preço na forma de déficit público. E, quanto maior a dívida, mais caro se cobra para se financiá-la. É tão simples quanto isso.

É injusto – para não falar mentiroso -, porém, dizer que o BC assistiu a tudo isso passivamente e “só agora” acordou para o problema fiscal do governo. Pelo contrário. Os alertas vêm desde a PEC dos Precatórios, ainda em 2021. Apenas em 2022 – portanto, dentro do ano reeleitoral – o BC elevou os juros de 9,25% para os atuais 13,75%, com o último aumento em 3 de agosto, já com a corrida eleitoral em curso. Se não houvesse independência do Banco Central, não é preciso ser nenhum gênio para imaginar que nada disso teria acontecido. Aliás, seria mais provável pensar que o BC baixaria os juros na marra, somente para facilitar a reeleição de Bolsonaro.

Fora isso, se a idéia de Lula fosse realmente fazer com que o Banco Central baixe os juros, algum assessor já deveria ter buzinado em seu ouvido que essa tática é contraproducente. Juros nada mais são do que custo do dinheiro, e eles são tanto maiores quanto maior for a incerteza do cenário. Ao praticar pugilato contra RCN, Lula acrescenta doses cavalares de insegurança em um panorama que já é pra lá de duvidoso. Resultado: o dólar sobe (o que encarece os preços, logo aumenta a inflação) e os juros futuros também sobem (como efeito para contrabalançar o risco adicionado).

Se de fato o governo quiser falar a sério quando o assunto for taxa de juros, já deveria ter apresentado o substituto do insepulto teto de gastos, aquele que faleceu sob os olhares complacentes do “liberal” (risos) Paulo Guedes. Mais que isso, já deveria ter apresentado um plano de vôo destinado a mostrar aos investidores – e isso inclui a classe média pobre e remediada que coloca suas economias na poupança – que não deixará a dívida pública subir até o ponto de se tornar impagável, o que provocaria ainda mais inflação (e, consequentemente, penalizaria os mais pobres).

Não se trata de pedir muito, nem de exigir-se cedo. Não se trata sequer de exigir algo novo, já que o primeiro governo Lula organizou a casa que permitiu ao Brasil crescer a uma taxa média de 4% entre 2003 e 2010. O fato, entretanto, é que o governo que aí está assumiu extraoficialmente no dia seguinte ao segundo turno das eleições, quando Jair Bolsonaro operou uma renúncia branca à presidência e passou a conspirar com seus asseclas contra a posse dos eleitos. Já lá se vão mais de 60 dias de governo extraoficial e 40 de governo oficial e, até agora, tudo que o Lula e o PT ofereceram à platéia foi gogó em matéria de propostas econômicas.

Se a idéia é reprisar o “nós contra eles” e vociferar contra a herança (de fato) maldita de Bolsonaro, tudo bem. Só não vale depois ficar com raiva quando a galera no cinema começar a xingar o diretor.

Afinal, ninguém gosta de assistir a filme reprisado.

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