A PEC do Supremo, ou Muito barulho por nada

Era só o que me faltava.

Morte no Amazonas, combustíveis nas alturas, o Brasil de novo no mapa da fome, e o mais recente “grito da moda” no Planalto Central é uma Proposta de Emenda à Constituição para ceifar os poderes do Supremo Tribunal Federal. De autoria do deputado federal Domingos Sávio, a PEC até agora reuniu pouco mais de cinquenta assinaturas entre seus pares. Mas, para encurtar a história a quem não tem muita paciência para conversa fiada, adianto-lhes desde logo a conclusão: tudo não passa da espuma.

De acordo com a proposta apresentada por Domingos Sávio, o Congresso Nacional deteria o poder de anular decisões não unânimes do STF. Mediante aprovação de 3/5 de ambas as casas legislativas (mesmo quórum para aprovação de emendas à Constituição), a decisão do Supremo sofreria uma espécie de overruling pelo Congresso, que passaria a deter a palavra final sobre qualquer disputa levada a cabo no Supremo.

Não é preciso ser nenhum doutor em Direito para concluir que a PEC em questão padece de incontornável inconstitucionalidade. Ora, o que faz do Supremo “o Supremo” é justamente sua capacidade de – como certa vez advertiu ironicamente Ruy Barbosa – “errar por último”. A função básica de qualquer sistema judiciário é dizer o direito no caso concreto, isto é, determinar por meio de um processo qual das partes tem razão. Quando se traslada essa competência de um Poder (Judiciário) para outro (Legislativo), chega-se à inequívoca conclusão de que um deles foi inteiramente esvaziado. Afinal, se é o Congresso que vai dizer quem é que tem razão numa determinada contenda constitucional, para que Supremo?

De fato, quando o Barão de Montesquieu estabeleceu as premissas teóricas básicas para a criação do que hoje se convencionou chamar de “teoria da tripartição dos poderes”, seu intuito básico era de evitar o surgimento de um “poder superpesado”, isto é, que houvesse um poder “superpoderoso” que sobrepujasse os demais. Estabelecida como contraponto ao Ancien Régime, a teoria da tripartição logo se tornou o principal baluarte para impedir um eventual retorno ao absolutismo.

É justamente em razão disso que uma tal “PEC do equilíbrio dos poderes” não pode prosperar. Agravada pelo fato de que ela submete praticamente todas as decisões do Supremo a eventual revisão congressual – a PEC fala em decisões “não unânimes”, o que representa mais de 99% do universo das decisões do STF -, a emenda transformaria o Congresso praticamente na única instância decisória do país, podendo, no limite, rejeitar até mesmo as decisões do Supremo que julgassem como inconstitucionais as leis aprovadas pelo Parlamento. Absurdo maior não poderia ser imaginado.

Haverá, claro, quem contraponha a isso o fato de o Congresso deter a prerrogativa de sustar decretos presidenciais que exorbitem o poder de regulamentar. A comparação, contudo, é falha e rasa. Em primeiro lugar, porque o Congresso não susta um decreto para colocar outro em seu lugar, como ocorreria com a PEC que se pretende sobre o Supremo. E, em segundo lugar, o poder de cassação se dá, nesse caso, para defesa das prerrogativas do próprio Congresso, uma vez que os decretos presidenciais que recaiam nessa hipótese estão a usurpar a componente legislativa que é a própria razão de ser do Parlamento. Bem oposto, ao revés, é o caso de se trasladar o poder de dizer o direito em última instância no caso concreto do Supremo para o Congresso, no que resultaria sem dúvida no desapossamento do núcleo essencial do poder jurisdicional.

O que a PEC apresentada pelo deputado Domingos Sálvio propõe, em resumo, é o mesmo chopp ruim que os garçons das bodegas mais derrubadas trazem na madrugada para os pinguços de fim de festa: muita espuma e pouca cerveja. O que o Brasil precisa é de solução para seus problemas concretos, aqueles que afligem a toda a gente e que tanto político procura esconder em época de eleição com cortinas de fumaça dessa natureza.

Quanto ao Supremo, vai bem, obrigado.

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