Após uma semana de afastamento forçado, eis que o Blog se vê obrigado a revisitar esse inglório terreno da política brasileira. Essencialmente insalubre, por vezes tóxico, a melhor notícia que se costuma ter do panorama político nacional é quando não há notícias. Desta feita, no entanto, Ciro Gomes, o verborrágico ex-governador do Ceará, resolveu colocar fogo no parquinho da esquerda.
A ocasião surgiu na gravação de um podcast para o jornal O Estado de São Paulo. Na entrevista, Ciro Gomes desancou Lula e o PT, tachando-os daquilo que toda a gente já está acostumada a ouvir do partido da estrela vermelha: corruptos, canalhas e outros adjetivos do gênero. O foco da atenção, contudo, foi a ex-presidente Dilma Rousseff. Numa elucubração de causar inveja às mais loucas teorias conspiratórias das redes insociáveis, Ciro Gomes acusou Lula – veja só – de conspirar pelo impeachment de Dilma.
Sem apresentar uma única prova ou mesmo um raciocínio minimamente meridiano que pudesse amparar tão extravagante teoria, Ciro Gomes afirmou estar cada vez mais convencido de que o torneiro bissílabo de São Bernardo teria conspirado pela derrubada de sua pupila. Como isso poderia de alguma forma fazer sentido e/ou beneficiar o babalorixá petista, só Ciro Gomes poderá explicar.
Demonstrando estar desacostumado a ser vidraça, o PT reagiu bem a seu modo: mal e burramente. Dilma acusou o golpe e passou a proferir impropérios contra Ciro Gomes pelo Twitter, que imediatamente os replicou, aumentando ainda mais o grau da fervura à qual ateara fogo. Lula, por sua vez, desceu ainda mais o nível, dizendo achar que Ciro havia ficado com algum tipo de sequela cerebral depois de ser contaminado pelo novo coronavírus. Até quando este texto estava sendo escrito, as cenas de quinta série tinham parado por aí.
Do ponto de vista eleitoral, a estratégia de Ciro Gomes parece muito clara. Uma vez que as vias à esquerda encontram-se interditadas por aquele que ocupa todos os espaços no lado jacobino do eleitorado (Lula), sua briga é tentar se transformar no “anti-Lula”, aquele a quem a população mais à direita enxerga como único capaz de derrotá-lo nas urnas. Na eleição de 2018, devido a uma série de circunstâncias extraordinárias e imprevisíveis, esse papel caiu no colo de Jair Bolsonaro. Ciro, portanto, pretende ser o Bolsonaro de 2022. Resta, contudo, combinar com os russos.
Pra começo de conversa, quem não gosta do PT já tem candidato faz tempo, e esse candidato é Bolsonaro. A menos que apareça alguma novidade muito alvissareira no campo da direita que sabe usar os talheres e não arrota na mesa (pode me chamar de “terceira via”), caberá a Jair Bolsonaro – montado na aliança com o Centrão e com a tinta da caneta na mão – a tarefa de enfrentar Lula em um eventual segundo turno.
Com suas raízes intervencionistas e seu passado de ex-ministro petista, Ciro Gomes jamais poderia desempenhar o papel de “terceira via”. Quem é da direita não confia nele, porque vê nele a sombra do “perigo vermelho”. E quem é da esquerda não gosta dele, porque Ciro precisa, para poder almejar algum sucesso, bater no “totem” dos progressistas brasileiros: Luís Inácio Lula da Silva. Logo, salvo alguma dessas surpresas inexplicáveis que só a política brasileira pode fazer por você, Ciro Gomes – espremido entre esses dois pólos – não tem como se viabilizar eleitoralmente em 2022.
Independentemente do que venha a acontecer com Ciro Gomes, o fato é que a sua altercação conseguiu mostrar o quão alheados os petistas estão em relação ao pleito do ano que vem. Jogando parado desde que saiu da prisão, Lula conseguiu subir nas pesquisas não por mérito próprio, mas por demérito do atual inquilino do Planalto. Com crises políticas sucessivas, cavalgando a débâcle econômica gerada pela pandemia e pela incompetência de Paulo Guedes, ameaçado até de reviver o apagão dos anos Fernando Henrique, Bolsonaro viu sua aprovação popular se desmilinguir em praça pública, a ponto de ter hoje o apoio de menos de 1/4 do eleitorado, situação inédita para presidentes candidatos a reeleição.
Ao permitir que Dilma respondesse a Ciro Gomes, os petistas cometeram um erro palmar. Resposta, se tivesse que ser feita, deveria ser institucional, jamais através da ex-presidente pessoalmente. Se há alguém de quem a população não deseja lembrar, esse alguém é Dilma Rousseff. Ao colocar Dilma na linha de frente, colocando-a no ringue para trocar sopapos, o PT fez exatamente aquilo que Ciro queria: relembrar que Dilma é PT.
Isso, claro, não seria grande problema, se os petistas tivessem promovido o expurgo da “Era Dilma”. Ou, em português mais claro, ter assumido o desastre de sua presidência e seguido em frente com a vida. Mas não. Preferiu reproduzir o discurso anódino do “golpe”, como se nada do que aconteceu no governo da ex-presidente tivesse de fato ocorrido (incluindo os escândalos de corrupção”. Trata-se de feitiçaria barata, porque, salvo uma pequena parte alienada da esquerda, ninguém cai no conto da “presidente-honesta-que-foi-derrubada-pela-conspirata-do-grande-capital-com-a-Lava-Jato”.
Todavia, como o partido se recusa a enterrar esse cadáver insepulto, fica por aí carregando o caixão de uma administração da qual absolutamente ninguém sente saudades (nem mesmo a esquerda). Aliás, o fato de Lula ter produzido uma resposta tão rasteira no dia seguinte dá a exata medida do quão desnorteados os petistas ficam ao serem confrontados com os esqueletos que possuem no armário.
A briga entre Ciro Gomes e o PT, portanto, serviu para alertar a todo mundo – inclusive e especialmente o mundo petista – que ainda há muita água pra rolar por debaixo dessa ponte até as eleições do ano que vem. Lula ainda é o favorito e Bolsonaro, hoje, é o maior candidato a elegê-lo novamente em 2022. Mas o jogo ainda está longe de estar jogado.
Não custa, a propósito, recordar o que aconteceu em 2018. Sabendo-se impedido pela Lei da Ficha Limpa, Lula lançou-se mesmo assim candidato, com o propósito de apontar com um dedazo Fernando Haddad como seu sucessor. O ex-presidente sabia que isso bastaria para colocá-lo no segundo turno. Na disputa final, Lula confiava que a maioria do eleitorado cairia no colo do seu candidato por gravidade, pelo simples medo de uma recaída autoritária que decorreria da eleição de Bolsonaro.
Deu no que deu.