Os caminhos da ciência, ou O aprendizado no processo científico

Muito já se escreveu, aqui e alhures, sobre a triste pandemia a nos rodear desde o ano passado. A despeito do evidente caráter científico da doença gerada por essa nova linhagem de coronavírus, o fato é que as consequências que ela impôs à população parece ter despertado os instintos mais primitivos naqueles que costumam renegar a Ciência e tudo aquilo que a cerca. Não por acaso, as fake news envolvendo a Covid espraiam-se com mais facilidade naquelas paragens dominadas por populistas de caráter autoritário, como era o caso de Donald Trump.

Aqui no Brasil, infelizmente, não foi diferente. Para além das mais loucas teorias conspiratórias, segundo as quais a “China criou o vírus em laboratório para dominar o mundo”, mesmo atitudes prosaicas ganharam um ar de politização e polêmica indevidas, dada a natureza do problema que estava – aliás, está – sendo enfrentado.

O exemplo mais claro dessa, digamos, “fábrica de criação de narrativas” talvez tenha ocorrido com a suposta contradição entre as falas do Dr. Dráuzio Varella sobre a letalidade e a forma com a qual deveríamos encarar o coronavírus. Logo no comecinho da pandemia, Dráuzio publicou um vídeo para dizer que não havia maiores preocupações com a doença. Pouco mais de dois meses depois, com o monstro já instalado, Dráuzio voltou atrás e alertou a população para os riscos da Covid, passando a defender o isolamento social e outras medidas sanitárias mais drásticas.

Obviamente, a mudança de orientação em um espaço tão curto de tempo foi um prato cheio para quem, de má-fé, quis atribuir a meia-volta a algum interesse político obscuro por trás dela. As pessoas sem maior instrução – ou mesmo aquelas que, instruídas, têm pouca disposição para avançar a fundo numa discussão técnica – são facilmente atraídas e ludibriadas por esse discurso anti-científico. É como se a “contradição científica” funcionasse como uma espécie de “denúncia” contra aquilo que se costuma designar de “sistema”. Uma vitória, uma “vingança” tardia da “ignorância” contra o “conhecimento”.

E o que devem fazer os cientistas diante disso?

Sentar e chorar, por óbvio, não ajuda a resolver o problema. A única forma de combater a ignorância é disseminar o conhecimento, cada vez mais e com uma força ainda maior. Há de se explicar que a Ciência avança com base em evidências. E, quando as evidências mudam, as suas convicções devem mudar também.

Veja-se o caso das Leis da Física. Isaac Newton descobriu, entre as coisas, a lei do movimento. Seu modelo de universo – e suas equações – serviram muito bem para toda a humanidade por quase 300 anos. O planeta Urano, por exemplo, foi descoberto por acaso. Ao descobri-lo, no entanto, os cientistas observaram que sua órbita fazia um movimento esquisito, que não batia muito bem com o trajeto esperado de acordo com a lei da gravitação universal estabelecida por Newton. Será que Newton, o pai da física moderna, teria finalmente errado em alguma coisa?

Alguns cientistas então pensaram:

“Quer saber? Newton era um sujeito tão absurdamente genial que ele deve estar certo”.

Restava, então, saber o que era responsável pelo movimento engraçado que Urano fazia para orbitar de uma forma tão estranha.

Alguns cientistas foram pra casa, fizeram os cálculos, e chegaram à conclusão de que, se Urano orbitava daquele jeito, deveria haver um planeta próximo, com uma massa X, a uma distância Y, influenciando no movimento do sétimo planeta do Sistema Solar. De posse dos cálculos, a galera do Observatório de Berlim resolveu procurar pelo novo planeta. Miraram os telescópios para o exato lugar onde deveria estar o astro descrito nas equações e – bingo! – lá estava Netuno, o oitavo planeta do sistema solar. A descoberta de Netuno parecia ser o triunfo definitivo das Leis de Newton.

Parecia.

Algum tempo depois, os cientistas começaram a observar que Mercúrio também trafegava por uma órbita estranha. “Ah, isso é fácil de resolver. Já fizemos isso antes. Deve haver algum planeta escondido influenciando no movimento dele”, foi o que os astrônomos imediatamente pensaram. Bastava olhar o céu com jeito para encontrá-lo. Mas o suposto “Planeta Vulcano”, o ente hipotético que habitaria o espaço entre Mercúrio e o Sol, jamais foi encontrado.

Foi somente no Século XX, quando Albert Einstein surgiu com sua Teoria Geral da Relatividade, que o dilema sobre a órbita de Mercúrio pôde ser definitivamente esclarecido. Com uma nova proposta de gravitação universal – que não seria mais propriamente uma força, mas uma deformação no tecido do espaço-tempo -, a Teoria de Einstein finalmente explicou que a órbita estranha de Mercúrio era resultado da imensa gravidade gerada pelo Sol, dada a sua proximidade com nossa Estrela-Mãe. E, por tabela, Einstei também acabou sepultando o tal “Planeta Vulcano”.

Isso quer dizer que as Leis de Newton estavam erradas?

Não, não. Absolutamente.

As equações concebidas pelo físico inglês descrevem com perfeição os movimentos nossos do dia a dia. E – quer saber mais? – descrevem com absoluta precisão a maioria dos movimentos dos grandes corpos celestes. Se nós pegarmos as equações de gravitação de Einstein e utilizarmos pouca velocidade e baixa gravidade, elas se tornam as equações de Newton. Não é que as Leis de Newton estivessem erradas, mas, sim, que as Leis de Einstein descrevem outras situações mais específicas para as quais as Leis de Newton não têm resposta.

E quer saber?

As Leis de Einstein também não funcionam para tudo. Ou, por outra, elas funcionam para quase tudo. Hoje, sabemos que as Leis de Einstein colapsam e falham ao tentarmos aplicá-las a lugares onde a gravidade é absurdamente elevada, como o centro de um buraco negro ou o princípio do Universo. Um dia, no entanto, quem sabe, aparecerá outro gênio da Física para formular uma nova teoria que preencha esse vazio no nosso conhecimento existencial.

Jogaremos fora, então, tudo que Einstein ensinou?

Claro que não. Apenas passaremos a compreender uma porção maior do Universo para a qual as equações do gênio alemão não conseguem ser aplicadas. E é assim que a Ciência caminha: não jogando fora o que se aprendeu no passado, mas, sim, entendendo que o conhecimento que é gerado pode levar a conclusões diversas daquelas que foram originalmente concebidas quando a teoria foi concebida.

Quando mais gente compreender isso, quem sabe a gente possa sofrer um pouco menos com as fake news que insistem em atazanar o nosso juízo…

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