Dando a cara a tapa – Semana especial de aniversário: O mundo dos anos 20

Encerrando esta semana comemorativa do décimo aniversário do Dando a cara a tapa, vamos ver o que o Blog acha que vai acontecer com o mundo nesta década que se inicia agora.

Ao contrário das previsões para o Brasil – que não costumam durar mais que horas, quiçá minutos -, as projeções para o mundo são um pouco menos complicadas de se fazer. Tal qual o movimento das placas tectônicas abaixo do solo, o mundo costuma mudar mais lentamente. E, quando se move em determinada direção, em regra segue esse curso até que alguma força extraordinária – ou algum evento cataclísmico, como esta pandemia que vivemos – o impulsione no sentido contrário.

Desde pelo menos a metade da primeira década deste milênio, o mundo convive com uma constatação: a China ultrapassará os Estados Unidos como maior potência global. A única dúvida era de quando isso aconteceria. Agora, pelo menos, já há essa certeza: ao final dos anos 20, o Império do Meio será o maior PIB da economia mundial, destronando uma hegemonia que perdura desde, pelo menos, o final do século XIX e o começo do século XX.

Do ponto de vista puramente econômico, isso não muda muita coisa em relação ao cenário atual. Afinal, em paridade de poder de compra, o PIB chinês já ultrapassou o norte-americano há algum tempo. Mas, do ponto de vista prático, a mudança no pódio das maiores economias do mundo tende a alterar significativamente o tabuleiro em que se movem as peças no xadrez global.

Em primeiro lugar, muitas das estruturas que governam o sistema global foram montadas com base numa paridade de poder entre Estados Unidos e Europa, com a clara dominância do primeiro. Banco Mundial e FMI, por exemplo, dividem os seus presidentes entre americanos e europeus desde sempre, sem que o resto do mundo tenha direito a apitar qualquer coisa nessa disputa.

Com a China no centro da economia mundial, a coisa muda de figura. Da mesma forma que hoje não passa pela cabeça de ninguém deixar os Estados Unidos de fora de algum acordo global, pois, sozinhos, os ianques respondem por 1/3 do mundo, será inimaginável ver os chineses não serem chamados e ter enorme poder de pressão e barganha nas grandes mesas de negociação daí pra frente.

Engana-se, porém, quem acredita que a China reprisará o tipo de estilo de dominância praticado pelos Estados Unidos ao longo do século XX. Desde sempre, os chineses são uma potência “voltada para dentro”. Não custa lembrar que os “descobrimentos” começaram com naus chinesas 200 anos antes dos ibéricos. E, ao conhecer o que havia no “resto do mundo”, os chineses voltaram aos seus portos e queimaram as embarcações, porque não queriam se “contaminar” com aquilo que identificaram como “bárbaros”.

Ao contrário dos Estados Unidos, que praticamente não tinham mais disputas territoriais quando se lançaram para ganhar o mundo, a China é um país imerso em profundas contradições. Há uma variedade étnica gigantesca e diversas populações “rebeldes” a apaziguar, sendo os exemplos do Tibete e de Taiwan os mais famosos. Mesmo casos supostamente já resolvidos, como a reanexação de Hong Kong, ainda dão muita dor de cabeça aos chineses, vide as revoltas que por lá pipocam desde, pelo menos, 2019. Não dá pra imaginar, portanto, que, com tantos buracos em sua retaguarda, a China vá se lançar em alguma guerra expansionista, por exemplo.

A inevitável ascensão chinesa reorientará, por gravidade, o eixo do mundo para o Oriente. O Ocidente, que já experimentava certo declínio desde quando o Velho Mundo começou a perder relevância no cenário econômico e político mundial, não terá muito o que fazer contra isso. Padrões que se impuseram por força do nome e do dinheiro das marcas representativas das grandes empresas ocidentais agora serão repetidos com sinal trocado, pois a determinação do que será o standard virá do outro lado do mundo. A possível escolha do padrão chinês para o uso da tecnologia 5g pode ser apenas o começo dessa tendência.

Os norte-americanos, claro, não assistirão a tudo isso calados. A derrota de Donald Trump renova o fôlego da fênix americana, sem dúvida, porque um fator permanente de instabilidade nacional foi tirado de cena e o retorno do soft power permitirá aos Estados Unidos direcionar melhor os interesses de seus aliados na direção dos seus próprios. Ainda assim, é difícil imaginar que mesmo um político tarimbado como Joe Biden possa reverter o fluxo da maré que se desenha no horizonte. Com alguma sorte, poderá apenas retardá-lo em alguns anos, permitindo ao Ocidente estabelecer uma contenção mais sólida dos interesses chineses. Esse equilíbrio pode ser decisivo para evitar o que até Xi Jiping já enunciou como temor: uma “nova guerra fria”.

O resto do mundo, claro, caminhará a reboque do que ocorrer nesse embate de titãs. Mesmo a Rússia dificilmente arranhará o esboço daquilo que se desenha para o final da década. Por mais que suas armas nucleares sempre tornem incontornável que se reserve um assento para ela quando a discussão envolver questões mais sérias a nível global, a questão aí será puramente formal. Além disso, ninguém sabe como a ditadura russa chegará ao final da década. Vladimir Putin pode ter muitas qualidades (e inúmeros defeitos), mas, até onde se sabe, a imortalidade ainda passa longe de seu alcance. E, por definição, qualquer transição de poder numa ditadura personalista está sujeita a crises e solavancos.

A boa notícia, contudo, é que a onda populista-nacionalista-neofascista que se insinuava mundo agora parece ter refluído. A derrota de Donald Trump foi um duro golpe para esse movimento autoritário. Os poucos exemplares que sobrevivem mundo afora têm pouca ou nenhuma repercussão a nível global, e dificilmente terão influência para exportar os seus “modelos” a outras paragens. Os anos 20 deste novo século, portanto, não devem repetir os anos 20 do século passado.

Só isso já é motivo para comemorar…

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