Em tempos de pandemia, a História sempre nos oferece boas lições a tirar em momentos de aflição. E, quando ela se junta à Economia, mais ainda se pode aprender com os experimentos de aprendizes de feiticeiros e políticos populistas que desgraçaram o Brasil por quase uma década.
Quando se fala em pacote econômicos, o primeiro que vem à mente da maioria é Cruzado. Plano que deu origem à série, o Cruzado foi um dos maiores engodos já forçados goela abaixo do pobre cidadão brasileiro. Ninguém com um mínimo de senso poderia acreditar que aquilo ali iria dar certo.
Curiosamente, no entanto, pouco se fala do seu sucessor, o Plano Cruzado II. Como filho feio não tem pais, o Cruzado II sempre aparece como uma espécie de nota de rodapé nos livros de história e economia, como mero interlúdio entre o Plano Cruzado (seu antecessor) e o Plano Bresser (seu sucessor). Infelizmente, ele foi bem mais que isso.
A história de como se chegou ao Plano Cruzado é bem conhecida. A ditadura militar, com suas idéias econômicas de jerico e a fantasia do “Brasil Grande”, quebrara o país após duas crises internacionais do petróleo. A hiperinflação dera as caras pela primeira vez em terras tupiniquins e as contas internacionais estavam destroçadas. No auge da desgraceira, Delfim Netto chegara a fazer uma espécie de contrabando diário do ouro garimpado em Serra Pelada para garantir receitas em dólares ao país, pagando-se uma baba de comissão aos intermediários de um conhecido banco estrangeiro, cuja única função era certificar que o ouro era ouro mesmo.
Depois que o último dos generais-presidentes saiu pelos fundos do Planalto (e da História), a esperança rediviva do país fora subitamente abortada pela morte de Tancredo Neves antes da posse. Assumiria inconstitucionalmente em seu lugar o vice, José Sarney, prócer da Arena e lugar-tenente da ditadura militar.
Como Sarney já disse inúmeras vezes, ele era um presidente fraco. Não só pelas circunstâncias históricas em que assumiu, mas também porque o “dono” do Congresso e da Constituinte era ninguém menos que Ulysses Guimarães. Sarney precisava desesperadamente de uma plataforma para chamar de sua. Do contrário, não conseguiria nomear nem sequer seu ajudante de ordens. E foi aí que entraram os “çábios” do Plano Cruzado.
Montado na base da mais tosca heterodoxia econômica de que se tem notícia, o Cruzado dera ao Brasil uma nova moeda, com três zeros a menos. A “solidez” da moeda assentava-se numa medida de força: o congelamento de preços. Na marra, os preços estavam proibidos de subir. Logo, a inflação em tese seria zero. A isso se somava o congelamento da taxa de câmbio, de modo que a paridade cruzado-dólar permanecesse a mesma. Mas, como todo mundo que já assistiu a Jurassic Park alguma vez na vida sabe, em ambientes extremos life finds a way.
Com o congelamento de preços, rapidamente emergiu o problema do desequilíbrio dos preços relativos da economia. Uma vez que comerciantes e industriais não conseguiam receber o valor que seria considerado justo pelas suas mercadorias, o resultado era óbvio: desabastecimento. Fora isso, o congelamento do câmbio levou a uma disparidade absurda entre os preços praticados dentro do país (que ficaram mais caros em dólar) e os produtos que vinham de fora (que ficaram mais baratos). Resultado: um aumento exponencial das importações e uma queda brusca das exportações, piorando nossa já deficitária balança de pagamentos.
A “saída”, como muita gente descobriu depois, foi o aparecimento da extravagante figura do “ágio”. Produtos básicos, como leite em pó, carne e cereais, que rareavam nas prateleiras oficiais, eram vendidos livremente em “mercados paralelos” pelo dobro ou pelo triplo do preço oficial da tabela do governo. A inflação, contida na ilusão oficial do congelamento, aparecia com todo seu vigor na realidade de quem precisava comprar mantimentos.
Já pelo meio de 1986, o Cruzado fazia água por todos os lados. Mesmo assim, os economistas e o governo Sarney levaram a farsa adiante a todo custo. Afinal, em novembro haveria eleições gerais para diversos governos estaduais e para o Congresso. A quebra da ilusão poderia levar a um fracasso nas urnas. Levada às últimas consequências, essa tragédia resultou no contrário: a maior vitória eleitoral da história do Brasil. O partido de Sarney – o PMDB – elegera 21 dos 22 cargos de governador em disputa, além de conseguir, sozinho, a maioria absoluta tanto da Câmara como do Senado.
Apenas seis dias depois de consumada a vitória nas urnas, viria o golpe. Com a cara mais limpa do mundo, os economistas que juravam de pé junto que tudo andava às mil maravilhas apresentaram a conta do estelionato eleitoral à população. Com o Cruzado II, deu-se fim ao congelamento, aumentaram-se uma série de impostos e, last but not least, chegaram até ao cúmulo de alterar o modo de calcular a taxa de inflação. Dois meses depois, viria a moratória da dívida externa. O Carnaval do Cruzado chegava ao fim numa melancólica ressaca de quarta-feira de cinzas expressa no Cruzado II.
De certa forma, o Cruzado I e o Cruzado II moldaram toda uma geração. Subitamente, o brasileiro ficou acostumado à palavra “pacote” e dormia assombrado sempre que um ministro da Fazenda via-se ameaçado no cargo. Afinal, ninguém sabia o que viria depois. Toda a desgraça que veio depois – Plano Bresser, Plano Verão e, especialmente, o Plano Collor – seriam apenas consequência da irresponsabilidade cometida pelo desastroso governo Sarney. Trata-se de uma tragédia que só veio a ser superada – e ainda assim com ressalvas – após o Plano Real.
São tempos tristes, que – espera-se – não voltem mais.