O depoimento de Sérgio Moro, ou Uma estrela que cai

Depois de balançar o coreto das autoridades com seu espalhafatoso pedido de demissão, denunciando o Presidente Jair Bolsonaro por intromissão indevida na Polícia Federal, Sérgio Moro foi convocado pelo Supremo Tribunal Federal a depor no inquérito aberto para apurar as acusações que proferiu. Rodeado de suspense e sigilo, o depoimento durou longas dez horas, fator que somente contribuiu para aumentar a expectativa sobre o teor do que dissera o ex-ministro.

De fato, depois de consumada a saída do governo, todo mundo ficou meio ansioso para saber, afinal, que tipo de material Moro reunira para usar em circunstâncias tão extremas. Afinal, não é todo dia que um Ministro da Justiça deixa o governo disparando acusações tão graves contra o Presidente da República.

Para quem era considerado a grande estrela do governo, arauto do combate à corrupção, o juiz implacável da Lava-Jato que sentenciou meio mundo à cadeia – incluindo os outrora todo-poderosos empreiteiros, além de políticos do naipe de um Eduardo Cunha ou de um Lula -, não se poderia imaginar menos que isso: uma bala de prata que atingisse em cheio o coração do governo Bolsonaro, forçando o presidente à renúncia ou, ao menos, deixando-lhe pouquíssima margem de manobra para escapar de um futuro processo criminal. Para quem esperava uma bomba do tipo arrasa-quarteirão, no entanto, Sérgio Moro ofereceu apenas traque.

De fato, nas dez páginas datilografadas de seu depoimento, pouca coisa se extrai da qual possa resultar dor de cabeça séria a Bolsonaro. Noves fora o fato de que a imensa maioria das acusações diz respeito a fatos que se assentam única e exclusivamente na palavra do ex-ministro, Moro voltou atrás em grande parte do que havia dito em seu pungente discurso de despedida. No limite, o ex-juiz chegou ao cúmulo de dizer que nem sequer acusara Bolsonaro de crime algum, pois quem teria feito isso “foi a PGR”.

Do ponto de vista estritamente jurídico, o depoimento de Moro não tem pé nem cabeça. Quem confronta o discurso de despedida com seu depoimento inquisitorial fica tentado a pensar que está diante de uma personagem esquizofrênica. Ou não será alguma forma de esquizofrenia acusar o Presidente de prevaricação, advocacia administrativa e obstrução de Justiça para depois dizer simploriamente que não tem nada a ver com isso? Fica-se numa situação semelhante à do sujeito que grita “Pega ladrão!” na rua e depois, quando indagado pelo policial sobre detalhes do gatuno, responde: “Mas quem disse que eu fui assaltado?”

Pode ser que Sérgio Moro tenha voltado atrás no que disse ao refletir sobre um possível tiro pela culatra caso levasse as acusações adiante. Afinal, a depender do que dissesse sobre o Presidente, ele mesmo poderia vir a ser incriminado por prevaricação, ao consentir por tanto tempo com atividades supostamente criminosas do supremo mandatário da Nação. Talvez por isso mesmo, Moro tenha circunscrito o período de desavenças – inclusive na troca de mensagens pelo WhatsApp – somente aos últimos quinze dias, alegando um suposto medo receio de ter novamente as mensagens interceptadas por um hacker (o que indiretamente confirma a veracidade das conversas obtidas pelo The Intercept na Vaza-Jato, mas deixa pra lá).

Mesmo que esse tenha sido o caso, faltou ao tão celebrado “estrategista da Lava-Jato” um mínimo de tirocínio para concluir que, com todo o desgaste pelo qual já passou, sua vida não seria tão fácil quanto foi quando ele era “apenas” um juiz de Curitiba. Uma coisa é ser um magistrado técnico, centrado nos autos e manejando apenas a sua caneta, contando com o apoio incessante da mídia e de uma população farta de tantos anos de corrupção. Outra, bem diferente, é deixar o cargo de Ministro da Justiça do adversário do político mais proeminente que Moro mandou prender, para cuja eleição, direta ou indiretamente, ele contribuiu, e tendo seus atos e imparcialidade contestados por uma reportagem jornalística cuja veracidade jamais veio a ser desmentida em seu conteúdo.

É possível, também, que o pedido público de demissão de Moro tenha sido apenas a primeira carta jogada no baralho da sucessão de 2022. Vendo-se amarrado a um governo politicamente desgastado, enfrentando uma crise econômica e sanitária sem precedentes, Moro pode ter abandonado o cargo simplesmente para tentar salvar o pouco de prestígio que lhe resta e tentar a sorte nas próximas eleições. Se for esse o caso, entretanto, o ex-juiz pode ter calculado mal suas possibilidades. Afinal, como o Procurador-Geral da República deixou muito claro nas entrelinhas do seu pedido de inquérito, se as acusações não forem provadas, elas não ficarão simplesmente ao vento. Moro poderá responder por vários crimes, incluindo denunciação caluniosa, calúnia contra o Presidente da República e até mesmo prevaricação.

Sem a caneta da Lava-Jato, sem o apoio monolítico de uma mídia que já lhe enxerga de forma desconfiada e enfrentando todo o peso da máquina governamental contra si, não seria de se espantar que Moro chegasse a 2022 arrostando uma condenação com base na mesma Lei de Segurança Nacional que ele tão gostosamente manejava contra os adversários. E, para piorar, inelegível pela mesma Lei da Ficha Limpa que impediu Lula de se candidatar em 2018.

Se isso vier a acontecer, será o caso de nos lembrarmos de Morpheus:

Fate, it seems, is not without a sense of irony.

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