Respeitando a necessidade alheia

Tio, em geral, só serve para duas coisas: encher o saco dos pais com as pirraças dos filhos; e representar mais uma boca nas festinhas de aniversário. Somente quando a criança começa a adquirir alguma autonomia é que os tios começam a adquirir outras funções. E, dentre elas, nenhuma é mais importante do que pegar os sobrinhos para passear enquanto os pais desfrutam um justo descanso, nem que seja só por uma tarde. Com Tadeu não era diferente.

Tio de Maria Clara, Tadeu só sabia aperrear o juízo da pobre figura. Estabanada de nascença, estridente por opção, Maria Clara era o protótipo perfeito para quem se dispunha a ser o tio chato. Tadeu, claro, não perdia uma oportunidade. Quando a menina quebrava alguma coisa entre uma brincadeira e outra, lá estava ele a denunciar a imprudência alheia. Quando a menina comia demais e acabava passando mal com a quantidade ingerida, mais uma vez ele estava lá para reclamar da comilança da sobrinha.

Mas tio que é tio, mesmo tio chato, não fica só nisso. Como gostasse da companhia de tão adorável e desajeitada figura, Tadeu resolveu um dia chamar-lhe para assistir a um filme. “Claro!”, responderam os pais entusiasmados, ao responder à pergunta se ele poderia levar à criança ao cinema.

“Só tem uma condição”, ressalvou Tadeu. “A avó tem que ir também para ajudar em caso de emergência”. E, por “caso de emergência”, entenda-se: “ter que trocar a fralda da criança”.

Tudo muito bom, tudo muito bem, partiram para assistir ao último desenho animado em cartaz o tio, a sobrinha e a avó. Pipoca de um lado, refrigerante do outro, com a criança sentada no meio, entre o tio e avó. Nada parecia indicar que aquela fosse ser uma tarde de infortúnio. Ao contrário. Tudo apontava para uma agradável matinê vespertina, na qual a sobrinha apreciaria some quality time with her uncle.

Foi justamente nessa hora que Maria Clara resolveu mostrar a todo mundo porque era conhecida como gasguita:

“Eu tô cocô!”, disse ela em alto e bom som, para todo o cinema ouvir.

“Você tá xixi ou tá cocô?”, perguntou desconfiada a avó.

“Eu tô cocô!!”, respondeu a neta, um tom acima do pronunciamento anterior.

“Tá bom, minha filha. Vamos só esperar terminar o filme que a vovó vai trocar a sua fralda, tá certo?”, suplicou delicadamente a avó da criança.

“Eu tô cocô!!!”, insistiu mais alto Maria Clara, para logo depois emendar uma sequência de gritos cada vez mais estridentes, de modo a não haver dúvida quanto à urgência da matéria: “Eu tô cocô!!! Eu TÔ COCÔ!!! EU TÔ COCÔ!!!!!”

Já incomodado com o mini-escândalo, Tadeu resolveu entrar na jogada:

“Maria Clara, o cinema todo já sabe que você tá cocô”.

Foi quando a miúda respondeu:

“O senhor é um chato!”

O cinema inteirou veio abaixo numa enorme gargalhada.

E foi assim que Tadeu descobriu que nunca mais deveria menosprezar as necessidades alheias.

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