Ciência e Religião constituem não somente duas seções autônomas do Blog, como invariavelmente acabam interconectadas ao serem tratadas aqui. Pelo menos um par de vezes advogou-se neste espaço a tese segundo a qual ambas não integram dois mundos antagônicos que não se comunicam entre si, mas antes encontram-se intrinsecamente ligadas, a ponto de não ser exagerado dizer que elas representam duas faces da mesma moeda.
Obviamente, nas ocasiões em que aqui se defendeu a compatibilidade entre Ciência e Fé, o Blog foi alvo de pesadas contestações, a ponto de ser chamado de herege de um lado e obscurantista de outro. Para além da incompreensão imanente a esse tipo de crítica, o fato é que muita coisa interessante deixa de ser compreendida pelo mero fato de o preconceito do lado contrário ser suficientemente grande para interditar qualquer debate. Pena, porque há muita coisa a ser estudada nesse campo. E, se não se pode afirmar categoricamente que Ciência e Religião são uma coisa só, há pelo menos espaço para suscitar dúvidas onde muita gente só enxerga certezas.
Todo mundo sabe, por exemplo, que a Teoria do Big Bang procura explicar a criação do Universo, do Sistema Solar e de tudo aquilo que nos envolve. Há uma série de furos na Teoria, como o problema da inflação cósmica, mas vá lá; aceite-se como um fato que o Universo começou do nada, a partir da explosão de uma sopa primordial de partículas que, ao se resfriarem, criaram as galáxias, as estrelas e os planetas. Em que essa explicação difere da narrativa do Gênesis?
“Deus disse: ‘Faça-se a luz!’ E a luz se fez”, narra o livro do Gênesis em seu capítulo 1, versículo 3. Embora não desça a pormenores propriamente científicos, o fato é que a Bíblia reproduz um relato em tudo compatível com a idéia de que, antes, não havia nada, e depois “houve o Universo”. E, como se isso fosse pouco, a descrição da criação do mundo começa justamente por aquilo que primeiro se espraiou pelo Cosmos: a luz.
Pode-se argumentar, claro, que há uma série de imprecisões na narrativa, que o relato bíblico não reflete na descrição o que de fato se passou nos primórdios do Universo, mas suscita no mínimo curiosidade que a história contada em um livro de manifesta inspiração religiosa (e, portanto, “acientífica”) possa estabelecer um relato que, se não é igual, pelo menos se assemelha na essência àquilo que a Ciência estabeleceu com verdade. Em outras palavras, é no mínimo curioso que teólogos de 3, 4 mil anos atrás produzam, sem acesso a nenhum instrumento e sem conduzir um único experimento, algo semelhante ao que se descobriu já em meados do século XX.
Mas as semelhanças não param por aí.
As curiosidades que aproximam a Teoria do Big Bang do Livro do Gênesis são alvo de intenso debate e dificilmente encontrarão nos ateus convictos o eco necessário para despertarem um mínimo de interesse. O mesmo, contudo, não pode ser dito em relação ao sacramento da confissão e a psicanálise.
Para quem não é católico, a confissão divide-se, do ponto de vista teológico, em quatro fases: 1) exame de consciência; 2) ato de contrição (arrependimento); 3) a confissão, propriamente dita; e 4) a penitência. No exame de consciência, reflete-se sobre tudo aquilo que se fez de errado. Na contrição, rejeita-se o erro como forma de reaproximar-se de Deus. Na confissão propriamente dita, informa-se ao pastor o relato dos pecados recolhidos no exame de consciência. E, finalmente, na penitência, o sujeito paga pelos pecados que cometeu (as famosas contagens de Pai-Nossos e Ave-Marias), podendo voltar à sua vida de consciência livre. Em que a confissão difere da moderna psicologia?
Na psicologia, como todo mundo sabe, o principal método de investigação consiste em fazer com que o paciente fale sobre si mesmo e sobre seus problemas. O sujeito senta numa cadeira ou deita no famoso divã e começa a relatar tudo da sua vida, a fim de encontrar o que pode estar errado nela. O que é isso, senão o “exame de consciência” da confissão católica?
Ao relatar os problemas da sua vida, o paciente encarna, guardadas as devidas proporções, o papel de confessor. Do outro lado, o psicólogo recita o papel de sacerdote, fiel depositário dos pequenos e grandes pecadilhos alheios. Tudo, claro, com vistas a tentar identificar o que está errado (“ato de contrição”), para depois fazer com que o sujeito supere seus problemas (“penitência”).
No final das contas, o que se verifica é que Bíblia e Psicologia acabam receitando um roteiro parecido para quem quer se reencontrar consigo mesmo. Pode-se ou não concordar com esse tipo de abordagem, mas o fato incontornável é que fazer com que o paciente (ou o pecador) fale sobre si mesmo continua sendo uma das ferramentas mais eficazes no tratamento dos transtornos da psiqué (ou da salvação da alma, como queiram). E, assim como exemplo anterior, é no mínimo curioso que os dois métodos estejam separados por mais de três mil anos de existência.
Na verdade, há muito a se estudar na fronteira entre a Ciência e a Religião. Se ambos os lados se despissem de seus preconceitos, talvez, quem sabe, acabassem por aprender um pouco mais sobre si mesmos.
A humanidade, penhorada, agradeceria.