Recordar é viver: “A condenação de parlamentares, ou Salvem o foro privilegiado”

Como o tema do foro por prerrogativa de função voltou à pauta tanto na Câmara quanto no STF, vale a pena recordar este post de quatro anos atrás.

Porque recordar é viver…

A condenação de parlamentares, ou Salvem o foro privilegiado

Publicado originalmente em 9.8.13

Mostrando que o julgamento do Mensalão não foi um ponto tão assim fora da curva, ontem o Supremo Tribunal Federal condenou o Senador Ivo Cassol a quase cinco anos de cadeia por fraude em licitação pública. Embora o STF tenha mudado sua posição em relação à competência para o decreto de perda do mandato, uma coisa é certa: mais hora, menos hora, Ivo Cassol arrostará uma condenação criminal. Com isso, terá suspensos seus direitos políticos e deixará de poder concorrer a cargos eletivos.

Não me importa, aqui, entrar no mérito da condenação, até porque não li os autos do processo. Interessa-me, na verdade, tratar de um assunto que foi abordado apenas lateralmente em outro post: a questão da prerrogativa de foro das autoridades públicas.

Sempre que aparece alguém falando em Reforma Política ou Reforma do Judiciário, surge alguém vociferando contra a figura do “foro privilegiado”. Denunciado como algum tipo de excrescência do nosso ordenamento, a prerrogativa de foro é talvez o mais incompreendido dos institutos do nosso sistema constitucional.

Na regra geral, qualquer pessoa pode ser julgada por um juiz de 1º grau. Do mendigo da esquina a Eike Batista, não interessa a posição social do sujeito. Qualquer juiz será competente para decretar a condenação ou a absolvição do cidadão por uma infração penal.

Ocorre que, segundo a Constituição, algumas autoridades não podem ser processadas por juízes de 1º grau. A elas se confere a chamada “prerrogativa de foro”, isto é, somente determinadas autoridades terão competência para julgá-los criminalmente. No caso de governadores, por exemplo, só o Superior Tribunal de Justiça pode julgá-los. Da mesma forma, no caso de parlamentares, só o STF pode condená-los.

Na maioria dos casos, a prerrogativa de foro atende a um imperativo de ordem lógica. Ninguém pode imaginar, por exemplo, um juiz sendo julgado por outro juiz. Em um caso, por exemplo, de inimizade entre dois togados, chegaríamos no limite à esdrúxula situação de um juiz mandando prender o outro. Por isso mesmo, a Constituição determina que juízes só podem ser processados criminalmente pelo respectivo tribunal a que se vincularem.

No caso da prerrogativa de foro de presidente, parlamentares e ministros de Estado, o foro privilegiado atende mais a dois problemas de ordem prática. Primeiro, seria esdrúxulo pensar em um ministro tendo de viajar a vários estados onde estivesse sendo processado para depor em processos criminais. Segundo, a prerrogativa visa a proteger o cargo – não a pessoa que o ocupa. Afinal, supõe-se que um tribunal superior é menos inclinado a paixões políticas do que juízes e tribunais locais, nos quais o paroquialismo por vezes se sobrepõe à razão jurídica.

Por muito tempo, a prerrogativa de foro foi denunciada como um “privilégio” das “elites” do poder. Sua mera menção implicava como sinônimo a impunidade dos que dela poderiam se valer. Não era pra menos. Em mais de um século de república, nenhum parlamentar, ministro ou presidente fora condenado pelo Supremo Tribunal Federal, apenas para citar o exemplo mais emblemático.

No entanto, a prerrogativa de foro é, em tese, mais prejudicial do que favorável ao réu. Quem é julgado por um juiz de 1º grau pode recorrer ao Tribunal de Justiça. Se houver violação a lei federal, pode ainda recorrer ao Superior Tribunal de Justiça. Na pior das hipóteses, havendo infringência à Constituição Federal, caberá recurso ao Supremo Tribunal Federal. Até lá, o sujeito não pode ser considerado culpado – a sentença não terá transitado em julgado – e, por conseguinte, não poderá ser preso para cumprir pena. Com alguma sorte, a demora em percorrer todo esse trâmite pode fazer com que a condenação prescreva e o sujeito, mesmo condenado, acabe se livrando da cadeia.

Pra quem tem prerrogativa de foro, o caminho é mais curto. Como muita gente veio a descobrir depois do julgamento do Mensalão, o foro privilegiado pode significar uma “bala de prata”: em um único julgamento, define-se o destino do réu, sem direito a choro nem vela. E a prescrição, nesse caso, fica muito mais difícil de se caracterizar.

Agora, com o julgamento do Mensalão, a prisão de Natan Donadon e a recente condenação de Ivo Cassol, já se começa a ouvir rumores de alguma emenda constitucional para acabar com a prerrogativa de foro. Parlamentares que antes sustentavam a conveniência do instituto agora passam a denunciá-lo como “privilégio inaceitável”. Daqui a pouco aparecerá alguém, certamente imbuído dos mais nobres sentimentos republicanos, dizendo que “todos devem ser iguais perante a lei e, por isso, deve-se acabar com o foro privilegiado”.

No frigir dos ovos, a questão é muito mais simples: enquanto o STF representou o túmulo dos processos criminais contra parlamentares, a prerrogativa de foro era algo bom e ajudava ao ordenamento do sistema. Agora que o Supremo se tornou uma máquina de condenar gente embaraçada com a lei, a prerrogativa de foro é uma deformação e todos devem ser julgados por juízes de 1º grau.

Por isso, não se deixe enganar: quem fala em fim do foro privilegiado está mais interessado nos benefícios da lentidão judicial do que na isonomia entre os cidadãos. Agora, que a lei penal finalmente consegue alcançar políticos de alto coturno, não é necessário que esse avanço do nosso sistema seja ameaçado pelo temor que alguns políticos têm de verem seus pecados expiados ao vivo na TV Justiça.

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