Recordar é viver: “A Hipótese Gaia”

Com a Nasa finalmente conseguindo usar o Hubble para enxergar a atmosfera de exoplanetas, vale a pena recordar este post de quatro anos atrás, pra você entender a razão da busca.

A Hipótese Gaia

Publicado originalmente em 28.5.13

Qualquer pessoa normal que ouça algo do tipo “os seres vivos estão em constante interação com o planeta” ou ainda “a Terra é um organismo vivo” provavelmente associará as frases a algum ambientalista natureza, daqueles bicho-grilo, com sandálias, roupas esfarrapadas e os indefectíveis óculos à la John Lennon. Ninguém – ou quase ninguém – poderia associar semelhantes afirmações a algum cientista. Muito menos imaginar que exista alguma teoria científica que embase tais afirmações.

Por incrível que pareça, no entanto, a teoria da Terra como um organismo vivo está longe de ser apenas uma idéia maluca. E os sujeitos que a defendem estão bem distantes do conceito de ambientalista bicho-grilo. Trata-se da chamada Hipótese Gaia, enunciada pela primeira vez por um britânico chamado James Lovelock.

No começo dos anos 70, James Lovelock, então um cientista desconhecido de 42 anos, propôs sua mirabolante tese. Na condição de biofísico, ele fora convidado pela Nasa para ajudar a elaborar os planos que visavam à conquista americana de Marte. A grande questão – a afligir os humanos desde muitos séculos atrás – era saber se havia ou não vida no planeta vermelho.

Ao melhor estilo de zagueiro de várzea, Lovelock entrou de sola: os cientistas da Nasa partiam de premissas erradas, pois presumiam que a vida em Marte deveria se desenvolver de forma pela qual se desenvolveu na Terra. Depois de uma semana de embates com os biofísicos americanos, o diretor da Nasa chamou Lovelock a seu escritório e disse-lhe: “Você tem três dias para me aparecer com uma proposição que faça sentido. Do contrário, está fora do programa”.

Lovelock passou três dias sem dormir. Será que haveria uma característica universal para a vida? É dizer: seria possível identificar alguma circunstância particular nos planetas que indicasse – seja qual fosse a forma de evolução da vida – se ele continha ou não organismos vivos?

Depois de três dias de insônia, Lovelock gritou o seu Eureka.

A grande questão era a seguinte: havendo seres vivos em um determinado planeta, é lógico concluir que eles tiram a sua subsistência (ar, alimentos, seja lá o que for) da matéria existente no próprio planeta. Da mesma forma, será nele no qual os resultados dessa absorção da matéria – seja na forma de matéria transformada, seja na forma de meros dejetos – serão depositados.

Até aí, tudo bem. É mais ou menos fácil para qualquer um entender. O problema é: como identificar os “sinais” da vida em um planeta sem precisar necessariamente ir até ele?

Foi aí que Lovelock brilhou. Utilizando um telescópio e um instrumento chamado de espectofotômetro, Lovelock identificou que a atmosfera de Marte era quimicamente muito estável e composta basicamente por dióxido de carbono (95%). A Terra, no entanto, encontrava-se em profundo desequilíbrio químico, com concentrações ridículas de CO2 e quantidades colossais – comparando-se à Marte – de oxigênio (20%) e nitrogênio (quase 80%).

E daí?

Daí que, como Lovelock explicou, a única coisa que poderia explicar o desequilíbrio químico da atmosfera na Terra era a presença de seres vivos em constante interação com o meio ambiente. Por tal razão, não era necessário enviar astronautas à Marte para saber se havia vida por lá. Quimicamente “morto”, Marte não deveria abrigar qualquer tipo de ser vivo.

Mas Lovelock vai além. Para ele, tanto a temperatura como a composição química da atmosfera dirigem-se de maneira natural a condições “ótimas”, isto é, as mais ideais para abrigar a vida. De fato, se a composição da atmosfera fosse muito diferente da atual, a existência de vida terrena estaria em perigo ou, na melhor das hipótese, ficaria muito prejudicada. Basta dizer que se o nível de oxigênio atingisse 40% do total da atmosfera, a facilidade da ocorrência e propagação de incêndios provavelmente dizimaria toda a vida vegetal existente. Por outro lado, se a mesma concentração de oxigênio fosse reduzida à metade, as dificuldades de metabolismo tornariam bastante improvável o aparecimento de seres vivos altamente complexos, como os humanos.

O nome atribuído à teoria – remissivo a uma divindade grega -, a personalidade controversa de Lovelock e a natural resistência dos cientistas a hipóteses “hipongas” fizeram com que o biofísico britânico fosse tratado como pária pela comunidade científica. Hoje, no entanto, estudos sérios buscam aprofundar as investigações sobre a hipótese formulada por Lovelock e seu nome já não desperta a mesma ojeriza de outrora.

Estando ou não certa a hipótese Gaia, uma coisa é certa: se você quiser ser um bom cientista, deve estar preparado para nadar contra a corrente. Do contrário, é melhor ficar em casa, mesmo.

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