A crise turca – Parte II, ou O que aconteceu na Turquia?

Diz o credo popular que, de onde menos se espera, daí é que não vem mesmo. Tal é a conclusão de quem assiste estupefato à crise que se desenrola na Turquia.

Como todo mundo já sabe, sexta-feira passada uma facção das Forças Armadas turcas lançou uma tentativa de golpe de Estado. À semelhança do que costumava acontecer na América Latina na década de 60, tanques foram levados às ruas, tropas invadiram estações de TV e foi decretada lei marcial no país. Tudo parecia caminhar para mais um daqueles golpes clássicos, nos quais gorilas invocam a “defesa do Estado de Direito” ou dos “direitos humanos” para derrubar um governo eleito pelo povo.

Só que não. Menos de 12 horas depois de deflagrado o movimento, o golpe já estava tecnicamente quebrado. Forças policiais e tropas leais ao regime desbarataram os golpistas. Nas ruas, os apoiadores do governo celebravam, enquanto o presidente do país, Recep Erdogan, desembarcava com ar triunfal no aeroporto de Istambul.

À primeira vista, o levante de sexta-feira seguiu o rito previsto para todos os golpes fracassados: uma articulação militar desconjuntada, acompanhada da falta de uma clara cadeia de comando e sem respaldo na maioria da tropa jamais conseguiria derrubar um presidente que ainda conta com largo apoio popular. À segunda vista, no entanto, a coisa parece mais complicada do que isso.

Após a derrota dos rebelados, o governo de Erdogan promoveu um expurgo que faria inveja à mais radical das ditaduras latino-americanas. Já no domingo, estavam demitidos por “associação com os golpistas” 15.ooo funcionários do Ministério da Educação, 500 clérigos da Direção de Assuntos Religiosos, 9.000 policiais e 6.000 soldados. Tudo isso e mais o “convite” para que 1.500 reitores do país entreguem seus cargos.

Se isso não fosse o bastante, foram expulsos 2.700 juízes e promotores (incluindo 9 membros da Suprema Corte do país) e bloqueados canais de televisão e 20 sites de notícias. Sem falar, claro, na defesa enfática que Erdogan fez da reinstauração da pena de morte para quem participou do levante. Para quem vê de fora, a impressão que fica é que foram os golpistas que ganharam. Se não, por que tantas medidas de força?

Olhando-se a fundo, vários detalhes aprofundam a dúvida sobre o que realmente ocorreu na última sexta-feira.

Em primeiro lugar, ninguém jamais conseguiria organizar uma lista de mais de 30.000 golpistas em menos de 24 horas. Noves fora o fato de que o curtíssimo espaço de tempo não daria margem sequer a uma investigação superficial sobre a participação no levante militar, é no mínimo controverso imaginar que tantos juízes e reitores de universidades – que nem sequer tiveram a oportunidade de “chancelar” o golpe – pudessem estar envolvidos na articulação golpista.

Em segundo lugar, a própria conduta de Erdogan durante o golpe deixa margem a questionamentos. Quando o levante começou, não se sabia nem mesmo onde o presidente estava, o que era muito conveniente para quem não queria ser detido pelos golpistas. Depois, Erdogan partiu no seu jatinho em direção a Istambul. Foi de lá que ele mandou a mensagem aos seus apoiadores para que saíssem às ruas. Para quem estava ameaçado de ser abatido pela Força Aérea sublevada, é curioso que tenha cruzado os ares em um jatinho particular com o transponder ligado, circunstância que permitia sua fácil localização nos céus turcos.

Em terceiro lugar, é no mínimo estranho que Erdogan tenha saído de seu esconderijo e se dirigido ao aeroporto da capital turca ainda com os tanques nas ruas. Naquela altura, supostamente ainda não se sabia como a crise iria terminar. Como entender, então, que o presidente viajasse para o covil do lobo? É razoável imaginar que Erdogan se deslocasse justamente para o primeiro lugar que o manual golpista indica que deve ser tomado em caso de derrubada de presidente? Tudo indica que não.

Se por um lado não se pode afirmar que o golpe de sexta-feira não passou de uma farsa encenada pelo governo, por outro não se pode afastar a conclusão de que, na pior das hipóteses, Erdogan sabia de antemão do levante e nada fez para detê-lo. Só isso explicaria tamanho fracasso do movimento golpista, sufocado por uma reação fulminante das forças leais ao governo.

Mas por que Erdogan forjaria um golpe ou deixaria que ele acontecesse para depois contra-atacar?

A razão é simples: além de legitimar o expurgo pretendido, a reação triunfal sobre um levante militar permitiria a Erdogan acelerar seu projeto de concentração de poderes, acabando com as poucas estruturas intocadas da ordem democrática turca. Ele, que vinha sendo acossado pelos jovens e pelos defensores do laicismo, terá agora todo o respaldo para aprofundar seu projeto de islamização da Turquia.

Não restam dúvidas de que o fracasso do levante militar foi uma boa notícia. Resta agora saber o que acontecerá com a frágil democracia turca nas mãos de Erdogan. Ao que parece, boa coisa não se deve esperar.

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