Todo mundo adora falar – sem ter lido – sobre Karl Marx. Seja para idolatrar, seja para criticar, o barbudo de Trier sempre é tendência nas rodas de bar. E não é pra menos. Vem de Marx boa parte da teoria econômica que hoje se estuda nas escolas e, mais do que isso, vêm dele as bases científicas de uma doutrina que, embora claramente ultrapassada, ainda conquista corações e mentes mundo afora: o Socialismo.
No entanto, pouca gente se dá conta de que, ao lado do economista, do filósofo e sociólogo, Marx era também um grandessíssimo historiador. Um dos maiores clássicos da historiografia universal foi escrito por ele. Trata-se do 18 Brumário de Luís Bonaparte.
18 Brumário de Luís Bonaparte
Obra obrigatória em qualquer biblioteca que se pretenda digna do nome, o 18 Brumário de Luís Bonaparte foi escrito em apenas três meses, entre dezembro de 1851 e março de 1852. Concebido no fragor da hora, o livro disseca com assustadora precisão a sucessão de acontecimentos que transformaram a então II República Francesa no Segundo Império Francês. Naquelas pouco mais de 100 páginas, repousa a explicação mais minuciosa do mecanismo clássico através do qual mesmo o mais tacanho dos homens – como era o caso de Luís Bonaparte – pode manobrar a malta ignara para derrubar a democracia e firmar-se como ditador.
A história é mais ou menos conhecida de todo mundo. Pouco mais de 50 anos antes, a burguesia enraivecida destronara a dinastia dos Bourbons na França e instalara uma República que podia até ser democrática, mas era extremamente caótica. Uma década depois de a guilhotina descer sobre o pescoço de Luís XVI, ninguém mais suportava a anarquia generalizada e implorava por um mínimo de ordem. Com um senso aguçado de oportunidade, um general corso cercou a Assembléia Francesa e dela extorquiu a destituição do Diretório e a nomeação de um triunvirato de fachada, no qual ele reinaria inconteste. Seu nome era Napoleão Bonaparte.
Ocorrido no dia 18 do mês de Brumário do calendário revolucionário francês (equivalente ao 9 de novembro do calendário gregoriano), a trama napoleônica firmou as bases daquilo que se convencionou chamar de coup d’État, ou, em bom vernáculo, golpe de Estado. Em suma, aproveita-se o desarranjo social e a insatisfação popular com a classe política para, com o apoio dos militares, extinguir as instâncias de participação democrática e concentrar todo o poder nas mãos de uma só figura. De fato, foi apenas questão de tempo até que o golpe do Consulado resultasse na autoproclamação de Napoleão como primeiro imperador da França.
Como se sabe, Napoleão caiu, foi exilado em Elba, retornou, perdeu a batalha de Waterloo, foi exilado mais uma vez, até morrer envenenado na ilha de Santa Helena. Após a restauração continental de 1815, todas as monarquias voltaram a reinar soberanas na Europa. E a calmaria duraria pouco mais de 30 anos.
Em 1848, um terremoto atingiria novamente a Europa. A Primavera dos Povos detonaria o Áncien Regime e faria retornar a experiência republicana inaugurada com a Revolução Francesa em pelo menos metade do continente. O fôlego, contudo, foi bastante curto. Em pouco mais de um ano, o Velho Regime daria novamente as caras. Apenas na França a República se mantinha de pé. Mas isso não tardaria a mudar.
Nas eleições presidenciais de 1848, elegeu-se o sobrinho do antigo imperador francês: Luís Bonaparte. Bonachão, inepto, autoritário, mas extremamente persuasivo, Luís Bonaparte parecia um político saído do Parlamento brasileiro. Passara anos conspirando como um obscuro deputado na Assembléia Francesa, até conseguir iludir o povo e sufragar-se como legítimo herdeiro das “tradições napoleônicas”. O pior, entretanto, ainda estava por vir.
Como a Constituição francesa proibisse a reeleição, Luís Bonaparte começou a pressionar o Parlamento por uma mudança constitucional que lhe permitisse manter-se no poder. Afinal, não lhe passava pela cabeça passar somente 4 anos no poder (qualquer semelhança com certo país abaixo do Equador é mera coincidência). Utilizando uma ousada estratégia na qual se misturaram cenouras e porretes, Luís Bonaparte consegue cooptar o apoio do Exército, ao mesmo tempo em que destrói a reputação do restante da classe política. Em determinado momento, só havia para a escumalha um único salvador da Pátria: ele, Luís Bonaparte.
Utilizando como pretexto o aniversário de 47 anos de coroação de seu tio, Luís Bonaparte decreta a dissolução da Assembléia Francesa em 2 de dezembro de 1851. Alguns dias depois, o salvador de araque convoca um plebiscito para ratificar seu golpe. O apoio popular ao embuste foi esmagador: 95% dos franceses sufragaram o golpe. Pouco tempo depois, Luís Bonaparte se transformaria em Napoleão III. Ruía de vez a II República Francesa.
Em sua narrativa – repita-se: escrita ainda no calor dos acontecimentos -, Marx consegue desmontar o ardil com extraordinária precisão. A tragédia que se seguiu foi apenas a consumação do desastre que se anunciava então. Não por acaso, Marx ironicamente dá ao nome de sua obra a data do golpe dado pelo tio de Napoleão III (muito embora eles tenham ocorridos em dias gregorianos diferentes): 18 Brumário.
Por isso mesmo, Marx inicia sua obra com a frase que se tornaria célebre depois: “Hegel observou, certa vez, que todos os fatos e personagens de grande importância da história universal ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”.
E hoje, mais do que nunca, os fatos se repetem. Às vezes não como tragédia, mas quase sempre como farsa.