Parece até que foi combinado.
Nas últimas duas semanas, Congresso, Ministério Público e (parte do) Judiciário movimentaram-se no sentido de alterar diversas regras constitucionais e legais relativas à persecução penal. O objetivo declarado das propostas é um só: reduzir a impunidade e responder aos anseios de uma população já exausta com a sucessão infinita de escândalos políticos.
Que a legislação penal brasileira é demasiadamente permissiva, pouca gente discorda. São raros os casos nos quais gente de alto coturno, e até mesmo a pequena bandidagem, responde efetivamente pelos crimes que cometeu, no tempo e modo que a lei entenderia razoáveis. Daí a intenção manifesta de aproveitar a onda de insatisfação popular para alterar as regras do jogo e tornar mais difíceis as coisas para os criminosos.
A idéia, em princípio, seria muito boa, mas há muitos poréns a serem ponderados antes de mudarmos radicalmente alguns preceitos básicos do nosso ordenamento. Por ordem de aparição, os últimos movimentos dos poderes constituídos contra os direitos individuais contêm vários sustos.
Em primeiro lugar, o Ministério Público Federal propôs a relativização da vedação ao uso de provas ilícitas no processo. De acordo com a proposta, o juiz poderia considerá-las, caso entendesse que os benefícios da sua utilização superariam a violação a inquinar a prova. Ninguém no MPF diz de público, mas a intenção é evitar casos como o da Operação Castelo de Areia, trancada por uma decisão estranhíssima do STJ.
Deixando-se de lado o fato de que tal projeto é manifestamente inconstitucional, por violar o art. 5º, inc. LVI, da Constituição Federal, a questão é saber como é possível valorar eventual benefício de uma prova ilícita em relação à sua própria ilicitude. A lógica da vedação ao uso de provas ilícitas reside precisamente no fato de que nada pode justificá-las. Por isso não se pode utilizá-las. A premissa é bastante simples: tentar fazer o certo de uma forma errada nada mais é senão uma forma de fazer errado.
Logo depois, veio o Congresso Nacional com a proposta de redução da maioridade penal. Não se trata de tema novo. Aqui mesmo já se escreveu sobre isso em pelo menos uma oportunidade. A questão, contudo, diz menos respeito ao mérito da proposta do que à propaganda que se faz dela. Em outras palavras, pode até ser correto e melhor reduzir a maioridade penal. O problema é que, hoje, os crimes cometidos por maiores de 16 e menores de 18 não alcançam sequer 5% do total de delitos praticados. Será uma mudança que atinge apenas uma ínfima parte do sistema criminal capaz de solucionar todos os problemas de segurança pública do país?
Por último, o juiz responsável pela Operação Lava-jato, Sérgio Moro, saiu-se com a proposta de execução imediata das penas decretadas pelos magistrados de 1º grau. Segundo essa proposição, os recursos eventualmente interpostos contra as sentenças não teriam efeito suspensivo. Logo, uma vez condenado, o sujeito iria direto pra cana, sem direito a choro nem vela.
Tal qual no caso da proposta do MPF, a mudança legislativa idealizada por Moro é flagrantemente inconstitucional. Pode-se achar ruim o sistema atual, mas a Constituição é muito clara ao estabelecer que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”(art. 5º, inc. LVII, CF/88). Logo, qualquer alteração legal que permita a execução provisória da pena, sem que estejam presentes os requisitos para a decretação da prisão preventiva, representa violação direta à Constituição.
O que se poderia pensar – e aí a discussão fica bem mais interessante – é se a Constituição assegura a qualquer cidadão recorrer de uma sentença até as cortes superiores. A idéia, já ventilada pelo então ministro do STF Cézar Peluso, é de alterar o texto constitucional para consignar que, a partir do julgamento nos tribunais locais (Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais), já ocorresse o trânsito em julgado. Afinal, é neles que se encerra a discussão sobre a prova e a justiça da decisão, restando depois somente discutir a interpretação da lei federal (no caso do STJ) ou da Constituição (no caso do STF). De todo modo, com a Constituição que temos, goste-se ou não dela, uma proposta como a de Sérgio Moro dificilmente passaria em um escrutínio sincero de validade.
A verdade – e é bom que isso seja dito em alto e bom som – é que nunca convém mudar a lei em quadras de grande comoção pública. Assim como ninguém deve ir às compras no supermercado de estômago vazio, não se deve alterar normas penais sob o impacto de grandes crimes. Já dizia o falecido Márcio Thomaz Bastos que país nenhum do mundo evoluiu produzindo legislações de emergência. Não há razão alguma para acreditar que o Brasil seja exceção à regra.
Ademais, determinadas regras existem justamente para se contraporem a movimentos de turba, impedindo que maiorias circunstanciais acabem por violar direitos básicos do cidadão. As garantias individuais asseguradas na Constituição são a parte mais reluzente desse belo rol. Deixar de lado conquistas históricas para satisfazer a sede episódica de sangue da massa em nada contribuirá para o avanço civilizatório do país.
No meio de tanta turbulência, o melhor que o país poderia fazer era parar e refletir antes de sair por aí alterando as normas legais. Um pouquinho mais de cabeça fria e menos de sangue quente podem evitar que o Brasil retroceda décadas em um sistema de direitos que a sociedade conquistou a duras penas.
Porque, como dizia Jorge Ben Jor, prudência e canja de galinha não fazem mal a ninguém.