Semana especial de aniversário – Os mais polêmicos: “O relatório do Senado norte-americano, ou A questão institucional da tortura”

A política internacional sempre foi um ponto forte do Blog. Não só pelo indisfarçável interesse deste que vos escreve pelos assuntos externos, mas, principalmente, pela carência que assola a mídia nacional em termos de comentaristas do assunto. Salvo raríssimas exceções, a maioria deles se limita a reproduzir textos traduzidos de agências de notícia do exterior. Quando não é isso, os analistas ficam na avaliação rasa e superficial sobre temas que tomariam pelo menos um estudo aprofundado como pré-condição para qualquer abordagem.

O fato de um post sobre o assunto alcançar a terceira posição na lista dos mais polêmicos do Dando a cara a tapa é motivo, a um só tempo, de júbilo e satisfação. Júbilo em razão de ser um modo direto de aferir a imensa qualidade intelectual dos freqüentadores deste espaço. Satisfação porque, com um tema tão espinhoso, suscitar o debate de algo que passaria em branco para a maioria da população reconforta o espírito de quem buscou justamente isso. Nesse caso especificamente, há ainda o bônus de a análise trafegar, por via transversa, por um tema naturalmente polêmico: a tortura.

Com vocês, “O relatório do Senado norte-americano, ou A questão institucional da tortura”.

O relatório do Senado norte-americano, ou A questão institucional da tortura

Publicado originalmente em 15.12.14

Na semana passada, dois grandes fatos aparentemente desconexos sacudiram o mundo político. Cada um a seu modo produziu impactos de diferentes graus na escala Richter conforme a importância do país envolvido.

No Brasil, o relatório da Comissão Nacional da Verdade acabou com pantomina segundo a qual a tortura nos porões não passava de episódios isolados produzidos por desequilibrados. A tortura era praticada com pleno conhecimento da cadeia de comando, promovida para exterminar os integrantes da luta armada e calar a dissidência política.

Nos Estados Unidos, um relatório do Senado revelou que, depois dos atentados às Torres Gêmeas, a CIA engendrou uma máquina de torturar destinada a obter informações que levassem à prisão e/ou morte de Osama Bin Laden. Para uma nação que se arvora no direito de invadir as demais com o argumento de violações aos direitos humanos, o relatório do Senado norte-americano é mais do que um constrangimento: é um típico caso de piada pronta.

De ambos os lados (dos que torturavam), as desculpas foram as de sempre. “Estávamos em guerra, e, na guerra, vale tudo”. Ou ainda: “As informações obtidas através da tortura foram importantes para salvar vidas”. A essas parolagens, seguiu-se a ladainha de sempre de que o passado deve ficar no passado e que os documentos devem servir apenas para impedir a repetição de novos erros.

O que une esses dois episódios aparentemente sem relação é justamente aquilo que eles têm em comum: a institucionalização da tortura como política de Estado. No seu livro Ilusões Armadas, Elio Gaspari resume com primor um truque de lógica repetido em todas épocas, por todos os governos, como desculpa para os casos de tortura nos quais são apanhados. A história é mais ou menos o seguinte:

Imagine, por exemplo, um terrorista preso, acusado de colocar a bomba em um ônibus escolar. A bomba explodirá dali a uma hora, salvo se for desativada antes. É quase certo que o terrorista saiba onde está o dispositivo, o que permitirá salvar as criancinhas no transporte escolar. O preso se recusa a falar.

E aí? Baixa o pau?

Se ninguém sabe onde está a bomba, é pelo menos possível que não exista bomba alguma. Além disso, não há qualquer garantia de que, existindo a bomba, o terrorista saiba onde ela se encontra. Admitindo-se que a bomba exista e que o preso saiba onde ela esteja, parece razoável aceitar que o torturem.

O truque de lógica está embutido no fato de que, uma vez autorizada, a tortura não deve ser punida. O torturador que pergunta “baixa o pau?” não está em busca da verdade escondida no silêncio desafiador do terrorista, mas na impunidade para o ato que pretende praticar.

Se de fato havia a bomba e a tortura permitiu evitar o desastre, poucos júris no mundo seriam capazes de condenar o envolvido. Mesmo assim, se o sujeito sabe de antemão que pode responder a um processo criminal, pensará duas vezes antes de praticar a tortura. O que a autorização por trás do “baixa o pau?” traz implícita é a cumplicidade entre o torturador e o sujeito que autorizou a tortura. O primeiro dirá que apenas cumpriu ordens, enquanto o segundo alegará que não havia outro jeito de evitar a tragédia.

É exatamente isso o que ocorre no caso norte-americano. Apesar das condenações de praxe e até mesmo da constatação de que a tortura praticada não ajudou em nada na captura de Bin Laden, ninguém falou em punição para os torturadores. No Brasil, o embuste é apenas um pouco mais sofisticado, pois toda a discussão é logo encerrada sob o manto protetor da anistia outorgada pelos militares.

Enquanto os torturadores de todo o mundo continuarem com a certeza da impunidade, a tortura continuará a ser um vexame que repete sempre e a cada dia para cada um dos países envolvidos.

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