Instigado por um debate acalorado havido entre mim e os amigos Moura Grande e AC, retomo as atividades jurídicas do Blog.
Há mais ou menos um mês, uma juíza federal do Rio Grande do Sul sacudiu o mundo jurídico com uma controversa decisão sobre a natureza dos honorários de sucumbência. Para a magistrada, a condenação imposta ao vencido no processo judicial deve reverter em favor da parte, não do advogado que a representa. Foi o bastante para despertar uma grita geral na nobre classe dos advogados. Para explicar a natureza do imbróglio, no entanto, é necessário voltar um pouco no tempo.
Todo mundo sabe que um processo judicial envolve custos para quem litiga, seja na condição de autor, seja na condição de réu. De cara, salvo raríssimas exceções, você tem que contratar um advogado para pleitear ou para defender-se do pleito alheio. Além disso, o sujeito é obrigado a pagar ao Estado as custas processuais, custas estas devidas pela movimentação da máquina judiciária estatal.
Obviamente, a parte que perde a ação fica obrigada a ressarcir a outra as custas que adiantou para entrar com o processo. Portanto, custas processuais, honorários de perito, dinheiro gasto em inspeção judicial, enfim, tudo que foi gasto para a parte que tinha razão provar o seu direito deve lhe ser ressarcido pela parte culpada pelo litígio. Isso constitui o cerne do chamado “princípio da sucumbência”.
O caldo começa a entornar quando a coisa chega nos agora famosos “honorários de sucumbência”. Além de todas as despesas que o vencedor teve para promover a ação judicial, a parte que perde a ação tem de pagar um percentual do valor da condenação para o advogado da parte vencedora.
Suponha, por exemplo, um comerciante que compra mercadorias de outro no valor de R$ 1 milhão. Como o devedor se recuse a pagar o combinado, o credor entra com ação judicial para cobrar o valor devido. Ao final da ação, o devedor pagará, além do valor do débito e das custas judiciais, um valor entre 10 e 20% ao advogado do credor. Ou seja: além dos honorários contratuais que recebeu do contratante – que são livremente ajustados -, o causídico receberá uma bagatela que variará entre R$ 100 mil e R$ 200 mil do sujeito que se recusou a pagar o débito no vencimento.
Ao contrário do que muita gente pensa, há uma razão de ser por trás do princípio da sucumbência, e ela vai muito além dos eventuais interesses classistas dos advogados. O princípio da sucumbência está diretamente relacionado a uma espécie de sanção estatal pelo fato de o sujeito escusar-se do cumprimento voluntário da obrigação. É dizer: por não ter cumprido por sua própria vontade o que lhe cabia e, por conseguinte, obrigar o Estado a mover sua máquina judiciária para impor-lhe o cumprimento forçado da obrigação, o sujeito é “punido” com o pagamento de um plus, plus este consubstanciado nos honorários de sucumbência.
Há, obviamente, quem ache injusto tal pagamento. Ora, se o advogado já recebe os honorários contratuais, por que receber ainda mais por um trabalho que já fez?
Em primeiro lugar, os honorários de sucumbência não tem natureza de contraprestação. A menos que alguém queira defender um conceito bisonho de remuneração, não há como entender que a condenação imposta à parte sucumbente ao advogado possa ser entendida como pagamento. Afinal, qual serviço o advogado da outra parte lhe prestou, senão ajudá-la a perder a ação?
Em segundo lugar, extinguir a sucumbência implicaria um indesejável abandono do princípio ético por trás desse princípio. Conforme exposto acima, os honorários de sucumbência têm por função última compelir as pessoas a cumprirem voluntariamente as obrigações a que se vinculam. Se não houvesse qualquer punição para o sujeito que, por vontade própria, deixa de pagar o que é devido, o que impediria que todo mundo adotasse o mesmo procedimento? Se, ao final, a única coisa que vai me acontecer é pagar o que eu já sei dever, é evidente que vale mais a pena apostar em um processo judicial de resultado duvidoso do que cumprir espontaneamente a obrigação.
Estando fora de questão que o princípio da sucumbência tem sua razão de ser e deve ser mantido, a decisão da juíza gaúcha abre uma nova e boa discussão: a destinação do valor pago a título de honorários de sucumbência.
Do ponto de vista estritamente jurídico, os argumentos invocados pela juíza não se sustentam. Sua decisão assenta-se no disposto no art. 20 do Código de Processo Civil, segundo o qual “a sentença condenará o vencido a pagar ao vencedor as despesas que antecipou e os honorários advocatícios“. Logo, de acordo com a magistrada, a verba sucumbencial seria devida à parte, não ao seu advogado.
Ocorre que o CPC data de 1973. Naquela época, vigorava a Lei 4.215/63, que estabelecia ser a verba sucumbencial devida à parte, salvo estipulação em contrário. Ou seja, o CPC estava em plena consonância com o que dispunha o antigo Estatuto da Ordem.
No entanto, em 1994, foi aprovado o novo Estatuto da Ordem (Lei nº. 8.906). Nele, ao contrário, está disposto de forma clara que “os honorários incluídos na condenação, por arbitramento ou sucumbência, pertencem ao advogado” (art. 23). Logo, seja pelo critério cronológico – lei posterior revoga lei anterior -, seja pelo critério da especialidade – lei especial revoga lei geral -, por lei os honorários inequivocamente pertencem ao advogado. Logo, a disposição do CPC não faz mais sentido.
Em prol do seu argumento, a juíza defende a inconstitucionalidade do art. 23 do Estatuto da Ordem. Para ela, tal disposição fere o princípio da reparação integral do prejuízo à parte vencedora. O problema é que o Supremo Tribunal Federal já julgou uma ação direta de inconstitucionalidade contra o Estatuto da Ordem e, em que pese a derrubada de vários artigos, não tocou na suposta invalidade dessa disposição específica. Portanto, é no mínimo discutível proclamar a invalidade de uma lei que já foi objeto de escrutínio pela Suprema Corte e passou sem ressalvas.
A despeito disso, talvez fosse conveniente repensar o sistema sucumbencial estabelecido no país. No fundo, o argumento da juíza não é inteiramente despropositado. No exemplo do comerciante acima citado, o sujeito vai, no mínimo, perder o dinheiro que pagou ao advogado a título de honorários contratuais para receber o que lhe é devido. Por que não imaginar que se possa ajustar a condenação dos honorários de sucumbência, de maneira que a verba seja repartida em duas metades entre a parte vencedora e seu advogado? Dessa forma, seria mantido o prêmio ao advogado que bem representou a causa, assim como se garantiria ao vencedor o ressarcimento de pelo menos parte do que pagou ao seu causídico.
Encontra-se no Congresso Nacional um novo projeto de Código de Processo Civil. No texto em tramitação, o formato atual é mantido ipsis litteris. A única modificação trazida nessa seara diz respeito à possibilidade de recebimento da verba sucumbencial aos advogados públicos, dinheiro hoje que, de forma esdrúxula, vai para o caixa do Governo.
É tempo, portanto, de reavivar o debate e discutir a sério essa questão. Do contrário, ficaremos perdidos entre reducionismos baratos e reivindicações classistas. Nada de bom pode sair desse tipo de confronto.
Gostei das explicações, particularmente por saber as causas que as originaram. Porém continuo me opondo a que o advogado investido em cargo público, com salário determinado e irredutível independentemente da sua produção, se utilizando da estrutura do Estado, tenha ainda direito a honorários como se litigasse na iniciativa privada. É mesma reivindicação de algumas categorias que trabalham em órgãos arrecadadores que acham que fazem jus a parte do numerário arrecadado. Oque seria das carreiras de Estado, particularmente da Forças Armadas e da Inteligência. não seriam sequer remuneradas.
É meu ponto de vista. Boa noite, caro Aristocrata.
Respeito a sua opinião, Comandante, mas pra mim não existe nenhuma justificativa plausível para o não recebimento dos honorários de sucumbência pelos advogados públicos. Como disse no texto, os honorários não são contraprestação pelo serviço. Logo, é equivocada a idéia de que, por utilizarem a estrutura do Estado, não devem receber a verba sucumbencial imposta ao perdedor da ação judicial. Além disso, não há qualquer razoabilidade na distinção entre os advogados particulares e os públicos. Se os particulares não recebem o dinheiro correspondente à condenação da parte vencida, por que razão o Estado deve receber? Um abraço.
Ei meu caro, não há diferença entre advogado público e privado quase é dizer que não existe distinção entre o público e o privado. Advogado do poder público como profissional de qualquer outra profissão recebe salário irredutível ao final do mês independentemente de produzir ou ser um total parasita. Na iniciativa privada o empregado assalariado pode ser mandado embora sem justa causa a critério da empresa. Esta que lhe pode lhe oferecer a que a ela lhe pareça conveniente. E o advogado sem vínculo trabalhista mais ainda: não tem nada a ver com quem qualquer funcionário público..
Um abraço e ótimo fim de semana.