No meio de tanta confusão rolando no país, acabou passando em branco um assunto bem palpitante no cenário internacional: a declaração do ex-dirigente da União Soviética, Mikhail Gorbachev, de que “estamos à beira de uma nova Guerra Fria”. Pronunciada na esteira das comemorações pelos 25 anos da queda do Muro de Berlim, a declaração ganhou o tom de alerta profético que costuma cercar as análises dos grandes expoentes da geopolítica.
Como todo mundo sabe, a Guerra Fria foi um conflito ideológico de quatro décadas entre Estados Unidos e União Soviética. De um lado, os representantes do “mundo livre”, capitalistas, (às vezes) democráticos e (quase todos) ocidentais. Do outro, os adeptos do bloco soviético, socialistas, totalitários e (quase todos) orientais.
A principal marca da Guerra Fria foi a corrida armamentista entre as duas superpotências emergentes da II Guerra Mundial. Numa disputa desenfreada para saber quem tinha mais mísseis nucleares capazes de mandar o mundo de volta à Idade da Pedra, Estados Unidos e União Soviética chegaram à década de 80 com um arsenal capaz de destruir a Terra ao menos uma centena de vezes. Felizmente o arsenal atômico nunca foi utilizado; serviu apenas para dissuadir o inimigo de iniciar uma guerra de destruição total.
Mesmo assim, as fricções ocasionais entre EUA e URSS – como a crise dos mísseis – sempre faziam toda a gente prender a respiração, deixando o mundo à beira de um ataque de nervos. Havia sempre a expectativa de alguém com a cabeça mais esquentada apertar inadvertidamente o botão vermelho. E então seria o fim de tudo.
A grande questão, contudo, é a seguinte: há mesmo o risco de vivermos uma nova Guerra Fria?
Ao contrário da previsão sombria de Gorbachev, este que vos escreve, modestamente, acredita que o temor é infundado. Muito embora o nível de tensão esteja mais alto do que o normal nos últimos tempos, especialmente depois da crise da Ucrânia, há várias razões a desautorizar o paralelo histórico.
Em primeiro lugar, não há mais o embate ideológico que marcou aquela tensa metade do século XX. Desde a queda do Muro, o paradigma ocidental venceu, e venceu inapelavelmente. Ninguém em sã consciência diria que se pratica na Rússia de hoje algo parecido ao pregado pela doutrina socialista que dominou o período soviético. No fundo, o que há é um misto de cleptocracia com um ambiente selvagem de competição capitalista. Nada que possa lembrar o modelo de economia planificada e inteiramente estatizada dos tempos de URSS.
Em segundo lugar, não existe muito espaço para uma corrida armamentista semelhante à das décadas de 60, 70 e 80. Nem de um lado, nem do outro, existe disposição para encarar o custo político de gastar bilhões com armamentos de enfeite, cuja missão será apenas ficar exposto na vitrine como instrumento de dissuasão militar. Fora isso, com o arsenal de que dispõe, não faz muito sentido para Estados Unidos ou Rússia enterrar dinheiro com algo que já têm.
Em terceiro e último lugar, o cenário mundial, hoje, é completamente diferente do cenário descortinado no pós-1945. Quando a II Guerra Mundial acabou, os Estados Unidos eram uma potência econômica sem paralelo, credores de metade do mundo e com um PIB que triplicara durante o conflito. Já a União Soviética exibia o mais temido exército do mundo, acabara de anexar metade da Europa e tinha todos os fatores pós-crise a seu favor para ajudar na reconstrução do Leste Europeu. Hoje, os Estados Unidos ainda cambaleiam depois da crise do subprime, enquanto a Rússia se vê às voltas com uma crise se avizinha por conta da queda do preço internacional do petróleo.
Tudo considerado, é no mínimo duvidoso que as antigas superpotências resolvam se engalfinhar novamente em um conflito ideológico, principalmente quando não há ideologias a propalar. É mais fácil acreditar em ambos se ocupando de seus próprios problemas internos do que tentando expandir sua área de influência para intimidar o oponente geopolítico.
O que pode acontecer – e aí o cenário é inteiramente crível – é o aprofundamento das divergências entre Estados Unidos e Rússia, de maneira que um bloqueie a ação de outro em países nos quais os interesses de ambos entrem em conflito. É o caso, por exemplo, da Síria, onde a crise instaurada pela guerra civil contra Bashar Al-Assad dificilmente chegará a bom termo se americanos e russos não entrarem em acordo. Considerando que tanto um como outro detém poder de veto no Conselho de Segurança das Nações Unidas, o mundo inteiro pode sofrer as conseqüências se a diplomacia for bloqueada pelo gelo.
Para bem e para o mal (mais para o bem), a Guerra Fria não passa de um retrato na parede de uma época que, oxalá, não viveremos mais. Já temos desafios futuros demais para ficarmos nos assombrando com fantasmas do passado.