Já há algum tempo, li no Blog do Josias um texto que me tocou muito. Trata-se de um texto atemporal, especialmente em se tratando de Brasil. A cada dois anos, renova-se a juventude do escrito. De tal modo que, mesmo movido pela busca incessante da novidade, vejo-me forçado a revisitá-lo sempre que as eleições se aproximam. Fugindo das características deste espaço, que sempre renegou a hipótese de copiar e colar notícias ou artigos publicados na grande imprensa, creio que esta é uma boa oportunidade para abrir exceção à regra. O título do texto é: “A crise é você”.
Escrito para o eleitor paulista, o artigo se aplica a qualquer cidadão brasileiro, seja de qual cidade for. Em resumo, o texto é um manifesto contra a desfaçatez, o cinismo, a indiferença que faz de nós, brasileiros, um povo permanentemente insatisfeito com a classe política, como se a culpa por eles serem o que são fosse deles, e não nossa.
Inconformado por natureza, anarquista por opção, este que vos escreve recomenda aos 46 leitores deste espaço que o leiam com atenção. Lembre-se: no próximo domingo, estarão em jogo os próximos quatro anos de sua vida. Não os jogue fora.
Respeitosamente,
O Autor
A crise é você
JOSIAS DE SOUZA
Li em algum lugar, não me lembro onde, um caso interessante envolvendo Picasso e o seu “Guernica”, quadro que mostra a destruição da cidade de mesmo nome durante a guerra civil espanhola.
Um graduado militar alemão fez uma visita a Picasso em seu estúdio. Ao dar de cara com uma reprodução de “Guernica” na parede, perguntou: “Foi o senhor que fez?” E Picasso: “Não, não. Foram os senhores”.
O eleitor brasileiro tem mania de olhar com distanciamento típico dos “scholars” o quadro de ruína de sua cidade. É notável, por exemplo, o caso de São Paulo, essa vistosa Guernica que pende do mapa do Brasil. O paulistano age como se não fosse com ele. Cômodo. Muito cômodo. Mas desonesto.
O eleitor brasileiro, em especial o morador de São Paulo, deveria desperdiçar um naco deste domingo eleitoral para fazer uma introspecção. Pode ser após o despertar, barriga colada à pia do banheiro, enquanto espalha o dentifrício pelas cerdas da escova.
Levando a experiência a sério, depois de bochechar e lavar o rosto, o portador de título eleitoral enxergará no espelho, no instante em que erguer os olhos para pentear os cabelos, o reflexo de um culpado.
Indo mais fundo no processo de auto-exame, o eleitor verá materializar-se diante de seus olhos o óbvio: prefeitos e vereadores não surgem por geração espontânea. Eles nascem do voto.
E o eleitor talvez levante da mesa do café da manhã convencido de que a crise na sua cidade exige dele uma atitude. Um gesto individual e consciente.
No caso de São Paulo, que não é único no país, a crise não admite mais que o eleitor se mantenha exilado no conforto de sua omissão política. Intima-o a retornar à história de sua cidade, moralizando-a.
O primeiro passo é o abandono da cômoda e tola retórica de que os políticos “são todos iguais”. Não são. A igualdade absoluta é uma impossibilidade genética. É papel do eleitor distinguir diferenças, não erigir desculpas que, na prática, o eximem de pensar.
O segundo passo é a caída em si, a descoberta de que se está diante de um desses momentos mágicos. Circunstância única, em que o poder está nas suas mãos. Ou, por outra, está na ponta do seu dedo indicador. É com ele que você irá dedilhar o teclado da urna eletrônica.
A magia desse instante está na possibilidade de começar tudo de novo, do zero. Não é todo dia que se tem uma nova chance. Lembre-se: para o eleito inconsciente, o eleitor impaciente é um santo remédio.
Assim, ao abrir o guarda-roupa, escolha um traje especial, à altura da ocasião. Leve a mão ao fundo do armário. Desencave aquela roupa empoeirada, esquecida no canto. Vista-se de cidadão.
Ao ganhar o meio-fio, apague por um instante de sua mente os megatemas nacionais, esses assuntos que costumam polvilhar a primeira página dos jornais. Esqueça Brasília. Risque o Congresso Nacional e o Palácio do Planalto de seus pensamentos.
Abra o seu espírito para as miudezas que o cercam. Se estiver em São Paulo, respire com vagar. Absorva cada partícula de poluição a que tem direito. Aguce o tímpano. Deixe que os ruídos urbanos o invadam.
Dê uma boa olhada na feiúra à sua volta. Repare na sujeira das ruas e dos monumentos. Fixe o olhar nos buracos da pista. Observe a ausência de transportes coletivos decentes. Note o lixo acumulado na quina do asfalto.
Eis a cidade diante dos seus olhos. É nesse pedaço de universo, vísceras à mostra, que você come e passa fome, dorme e perde o sono, trabalha e fica desempregado, ama e odeia, canta e chora, espolia e é assaltado. É aqui que você vive e morre a cada dia.
Entrando na cabine eleitoral, trate de pôr um ar solene na face. Não tenha pressa. Você é o dono desse momento. Aproveite-o. Deguste-o. Você tem o poder, lembra-se? Você é o protagonista do espetáculo. Você…
Faça uma visita ao seu interior. Encontre-se consigo mesmo. Certifique-se de que não esqueceu a consciência em casa. Converse com ela. Questione-a. Depois, estique o dedo e vote com a alma.
Há sempre a alternativa de lavar as mãos e continuar entregando o caso à divina providência. Se preferir esse caminho, tudo bem. Mas não reclame amanhã, quando descobrir que Deus está morto. Sua omissão o matou. Sente-se e reze. Peça perdão. Expie os seus pecados. A crise é você.
Muito oportuna sua lembrança e mesmo o texto do Josias de Souza, que confesso me surpreendeu. Porém durou pouco mais de um dia minha admiração, pois, em 5 de outubro, não é que o pulha do Josias mostrou sua verdadeira face de eleitor supostamente esclarecido e defensor de preceitos políticos corretos. Em pleno dia da eleição o Josias nos brindou com o artigo intitulado “Confesso que, transtornado, anularei três votos” onde revela que anulará votos se dizendo decepcionado com os políticos e a política, prestando um grande desserviço à democracia e ao processo eleitoral. Esse é o verdadeiro Josias que tanto conhecemos.
Tomei um susto quando li o texto, André. Prefiro ficar com o Josias que escreveu o texto originário. E torço para que o “transtorno” mencionado pelo jornalista tenha sido episódico. Um abraço.