Quem não é de Fortaleza provavelmente não prestou atenção, mas a semana passada inteira foi movimentada pela expectativa de uma super-ultra-hiper-mega reportagem bombástica do Fantástico sobre a violência na Loira Desposada do Sol. A ansiedade com a reportagem foi tanta que até campanhas rolaram nas redes sociais para que o povo colocasse panos ou lençóis brancos nas janelas como forma de pedir paz neste canto do mundo. Quando finalmente chegou o domingo, o que se teve foi um verdadeiro anticlímax.
Na “reportagem” de ontem, o mote era falar sobre as três cidades mais violentas do Brasil: Maceió, Fortaleza e João Pessoa. Em todas elas, um cenário comum: polícia capenga, governo cínico, população apavorada. A distingui-las somente o tamanho e a intensidade do problema, embora mesmo nesse quesito a diferenciação seja discutível. Segundo a ONU, quando os homicídios passam de 10 para cada grupo de 100 mil habitantes, já se está diante de uma epidemia de violência. Sob esse aspecto, saber se 70 assassinatos por 100 mil habitantes é pior do que 80/100 mil habitantes torna-se um exercício de frivolidade.
Do ponto de vista estritamente quantitativo, o principal foco da reportagem deveria ser Fortaleza. Das três, Fortaleza é de longe a mais populosa (3,5 milhões, contra 930 mil de Maceió e 720 mil de João Pessoa) e disparado a que mais teve assassinatos em números absolutos no ano passado (aproximadamente 3.700 mortes, contra 750 em Maceió e 5oo em João Pessoa).
Do ponto de vista qualitativo, também a principal estrela da reportagem tinha de ser a capital do Ceará. Isso porque a violência por aqui cresce em ritmo exponencial há sete anos. Hoje, o total de mortos por crimes violentos é o triplo do que era é 2007, quando Cid Gomes assumiu como governador. Em Maceió, por exemplo, o ritmo tem oscilado, mas mesmo assim se mantém abaixo dos índices de violência de 2011.
Se tudo isso não bastasse, Fortaleza é a única das três cidades retratadas que receberá jogos da Copa do Mundo. Ou seja: é a única na qual a violência urbana tem potencial suficiente pra transformar o cotidiano policial em manchete do noticiário internacional quando começar o evento da Fifa no Brasil.
Mesmo assim, por uma dessas razões insondáveis da TV brasileira, o interesse jornalístico por Fortaleza foi diminuto. Dedicou-se um tempo três vezes maior a Maceió – onde os índices caem – e, por via transversa, chancelou-se a versão oficial de que toda morte aqui é derivada de acerto de contas do tráfico. Isso tudo na mesma semana em que dois estudantes universitários da UFC (um do Direito, outro da Engenharia) foram mortos em tentativas de latrocínio na cidade (nada a ver com drogas).
Como desgraça pouca é bobagem, a segunda-feira amanheceu no Ceará com a capa do jornal O Povo trazendo o “saldo” do final de semana: 67 assassinatos; 39 a bala (ver aqui). Não custa lembrar que, há dois meses, Brasília foi alvo de intensa mídia nacional quando uma operação tartaruga fez disparar os índices de homicídio: 76 assassinatos no mês de janeiro. É dizer: os assassinatos de apenas um fim de semana em Fortaleza equivalem a quase um mês de surto de violência na capital federal.
Curiosamente, à primazia cearense da violência não corresponde igual repercussão midiática. Todo dia assistimos nos telejornais nacionais reportagens sobre mortes e assassinatos ignominiosos no Rio e em São Paulo. Esquece-se de dizer que o índice de homicídios por 100 mil habitantes na Cidade Maravilhosa representa apenas um terço do da capital cearense e que em São Paulo, maior metrópole da América Latina, com população quatro vezes maior do Fortaleza, mata-se menos em números absolutos do que na Loira Desposada do Sol.
Pode ser que o Ceará não tenha lá grande relevância no cenário nacional. Afinal, representamos pouco mais de 2% do PIB nacional e apenas 4% da população brasileira. Mesmo assim, é no mínimo intrigante observar que a violência por estas bandas, mesmo quando o interesse jornalístico é elevado, não desperta atenção da grande mídia. Quando o movimento “Fortaleza Apavorada” organizou uma passeata para protestar, 10.000 pessoas foram às ruas clamar por um pouquinho mais de segurança no Estado. Tratou-se da maior manifestação popular espontânea na cidade desde o “Fora, Collor”. Mesmo assim, nenhum telejornal nacional repercutiu a notícia.
Agora, parecia que a Rede Globo queria se redimir da mancada de um ano atrás. O que produziu, no entanto, foi um pastiche digno dos pastelões mais mal produzidos da televisão brasileira. A tragédia, nesse caso, transformou-se em piada.
E numa piada de muito mau gosto…